quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O FUTURO DA UNIVERSIDADE

O FUTURO DA UNIVERSIDADE
Hélio Schwartsman

Marcelo Knobel, reitor da Unicamp, disse em entrevista à Folha que o teto salarial paulista, hoje em R$ 21 mil, é uma ameaça à excelência das universidades públicas do Estado. Com esse valor para o topo da carreira, fica difícil atrair os melhores talentos. Concordo, mas acrescento que a lista de constrangimentos não para aí.

A isonomia salarial, tão celebrada pelos sindicatos, produz um efeito muito semelhante. Mesmo que não houvesse teto, a regra segundo a qual não pode haver diferenças salariais entre professores com a mesma titulação e tempo de carreira impediria as universidades públicas de contratar prêmios Nobel ou quaisquer outros pesquisadores de gabarito internacional. Para escancarar o absurdo da coisa, tente imaginar um clube como o Barcelona ou o PSG tendo de lidar com uma norma que manda pagar o mesmo para a estrela do time e o terceiro goleiro reserva. Acho que nem os fundos do Qatar resistiriam.

Teto e isonomia são apenas dois exemplos de uma série de empecilhos institucionais que, receio, acabarão condenando as universidades públicas à mediocridade. Para tornar o quadro mais dramático, vale lembrar que hoje, ao contrário de décadas passadas, elas já não reinam absolutas.

Em áreas como medicina, direito, economia e engenharias, que têm forte inserção no mercado, já surgiram instituições privadas que oferecem cursos de qualidade comparável ou até superior aos da Unicamp, USP etc. Elas ainda ficam bastante atrás em pesquisa e é improvável que se interessem por criar cursos quase que fadados a ser deficitários como sânscrito (eu fiz um semestre como ouvinte) ou astronomia, que são, entretanto, o que assegura o caráter de universalidade que faz parte até da raiz da palavra "universidade".

De todo modo, se as universidades públicas querem manter a relevância, precisam pensar em reformas mais profundas do que apenas criar cotas ou estancar o deficit orçamentário.

Fonte: Folha de S. Paulo

terça-feira, 29 de agosto de 2017

BRASIL PERDE DO URUGUAI NA AGENDA DIGITAL

BRASIL PERDE DO URUGUAI NA AGENDA DIGITAL
Ronaldo Lemos

Na semana passada, o Uruguai realizou um grande evento para comemorar os dez anos da implantação de sua agenda digital.

O evento contou com a presença do atual presidente, Tabaré Vázquez, e também de um ex-presidente da Estônia, país que é apontado hoje como modelo na implementação de políticas digitais.

Quem planta antes colhe cedo. No país vizinho, a agenda digital foi criada em 2007. Os dez anos que se seguiram provam claramente os benefícios do investimento feito.

Hoje, 100% das escolas do Uruguai estão conectadas à internet em banda larga. Mais do que isso, 92% das escolas estão conectadas com fibra óptica de alta velocidade. Tudo isso graças somente a um dos componentes do programa, chamado de "Plano Ceibal". Esse plano investiu em tecnologia para revolucionar a educação. E revolucionou.

O contraste com o Brasil é penoso. Aqui, apenas 1% das escolas públicas têm conexão maior do que 20 Mbps. Esse é o piso do que é considerado banda larga hoje nos EUA.

No Brasil mais de 45% das escolas públicas recebem conexão menor do que 2 Mbps. Isso significa que um único aluno assistindo a um vídeo é suficiente para congestionar a rede.

O plano uruguaio foi ainda mais ambicioso. Implantou desde logo uma lei de proteção aos dados pessoais e criou uma agência para cuidar desse tema. Com isso, matou dois coelhos. Deu segurança jurídica para o setor privado investir em análise de dados, fixando as regras do jogo.

Deu também tranquilidade ao cidadão, permitindo que o governo investisse pesado em serviços digitais e dados, sem que isso levasse a vigilância, à venda de dados para o setor privado ou a outras ameaças à privacidade.

Só lembrando, o Brasil nem sequer possui uma lei de proteção de dados pessoais. Essa agenda aqui está atrasada há mais de 20 anos.

A atual aposta do Uruguai é a certificação digital. Nesse sentido, o país criou um RG digital, que permite acessar serviços governamentais e praticar todos os atos da burocracia pela internet. A meta é que até 2020 esse RG esteja sendo usado por 30% da população.

No Brasil, acabamos de perder a oportunidade de fazer algo similar com a lei que criou o novo RG (RIC - Registro de Identidade Civil). A lei foi aprovada em 2017, mas parece ter sido escrita em 1998, porque ainda aposta no papel.

Ao mesmo tempo, os certificados digitais no Brasil são usados por apenas 2,5% da população e são caríssimos (custam de R$ 180 a R$ 460). O que é inaceitável.

Os derrotistas vão dizer que no Uruguai é fácil fazer tudo isso, porque o país tem apenas 3,4 milhões de habitantes. Estão errados. O Brasil tem algo que o Uruguai não tem: escala.

Se tivesse também gestão, ideias e planejamento, poderia fazer muito mais que o país vizinho fez nos últimos dez anos. Poderia ser líder na América Latina em políticas digitais. Não é o caso.

O país ainda patina. Fala muito e faz pouco. Ataca o que dá certo. E se alia com o que não tem futuro.

Fonte: Folha de S. Paulo

domingo, 27 de agosto de 2017

UMA MÚSICA POR VEZ

UMA MÚSICA POR VEZ
Ruy Castro

Volta e meia leio que, para gáudio e delírio de milhões, o festejado cantor ou compositor tal está lançando uma música nova —"inédita", como se diz— pelo streaming. Talvez em breve ele faça outras, que virão se juntar a esta e formar um, como também se diz, álbum. Ou não –quem sabe esta música não está destinada a uma carreira solo, avulsa, pelos céus da cibernética? Como um single dos velhos tempos.

Até 1948, todo o consumo de discos se dava através de singles —discos avulsos de 78 r.p.m., com uma faixa de cada lado— ou seja, duas músicas por disco. Um artista comum gravava dois discos, ou quatro músicas, por semestre; um artista de sucesso gravava um disco a cada dois meses; e os fenômenos, como Bing Crosby, nos EUA, ou Francisco Alves, no Brasil, gravavam dois discos por mês. Isto, nos anos 1930 e 1940.

As pessoas achavam natural consumir música aos poucos. Muitos artistas gravavam, mas a produção era a conta-gotas. Um disco era escutado inúmeras vezes, de um lado e de outro, e as duas músicas se impregnavam nos ouvidos.

Nos anos 50, surgiu o glorioso LP —o que hoje as pessoas chamam de álbum ou vinil—, com seis faixas de cada lado. Passou-se a ouvir muito mais música. Vieram os álbuns "conceituais", como os de Frank Sinatra —12 ou 14 faixas obedecendo a um "conceito". Às vezes, um álbum simples não era suficiente, daí os duplos ou triplos, como os songbooks de Ella Fitzgerald. Infelizmente, produzia-se também muito lixo –na verdade, poucos álbuns justificavam o vinil com que eram feitos. Do LP passamos para o CD nos anos 80, e essa relação não se alterou.

Mas, com o fim desses dois formatos, voltamos à cultura do single, agora sem o suporte físico. Isso não é de todo mau. À razão de uma música por vez, pode ser que a música em geral melhore.

Fonte: Folha de S. Paulo

ERROS EM SÉRIE

ERROS EM SÉRIE
Hélio Schwartsman

O que surpreende em Michel Temer é a incapacidade de aprender com os próprios erros.

Mesmo depois de quase ter perdido a Presidência devido a um encontro furtivo com Joesley Batista, Temer voltou a marcar reuniões noturnas e fora da agenda com Raquel Dodge, Gilmar Mendes, Aécio Neves...

Diga-se em favor de Temer que ele não está só. Todos estão cansados de saber que é uma roubada fazer comentários desairosos nas redes sociais, mas, ainda assim, seguem produzindo-os em escala industrial. Todos estão cansados de saber que é fria tirar "nudes" em que aparece também o rosto do retratado, mas não abandonam a prática. Será que o presidente e o público em geral não aprendem com erros, nem os seus próprios nem os alheios?

A verdade é que é bem mais difícil aprender com o erro do que gostamos de imaginar. Vários processos cognitivos contribuem para a vulnerabilidade. Um especialmente interessante é a facilidade com que nossas mentes se agarram ao prazeroso ou conhecido. Se você já disse uma bobagem no Facebook e não teve problemas, só se divertiu, é essa a lembrança "afetiva" que o cérebro tende a mobilizar das próximas vezes em que for fazer comentários na rede.

Um experimento recente de neurocientistas da Johns Hopkins mostrou que basta uma memória levemente positiva para capturar e enviesar nossa atenção. Eles pagaram US$ 1,50 para cada objeto vermelho que voluntários identificassem na tela do computador e US$ 0,25 para cada verde. No dia seguinte, instruíram as cobaias a repetir a tarefa, mas desta vez sem que houvesse nenhum tipo de pagamento. Os voluntários continuaram buscando sofregamente as peças vermelhas, mesmo sabendo que não ganhariam nada.

Mecanismos como esse ajudam a explicar os erros em série que cometemos, problemas como o vício em drogas e, vemos agora, até teimosias de nossos políticos.

Fonte: Folha de S. Paulo

sábado, 26 de agosto de 2017

O BURACO É MAIS EMBAIXO

O BURACO É MAIS EMBAIXO
Hélio Schwartsman

Nos últimos anos, o Brasil abraçou com gosto as políticas de ação afirmativa. Não sou um grande fã das cotas raciais em universidades, mas entendo os argumentos dos que as defendem. A educação superior é a principal via de ascensão social; como grupos mais discriminados já iniciam sua trajetória escolar em desvantagem, estabelecer uma regra de acesso à universidade igual para todos praticamente os condena à imobilidade.

Como somos neófitos nessa matéria, convém olhar para a experiência dos países que começaram antes de nós para aprimorar nosso sistema. "The New York Times" acaba de publicar balanço de 35 anos de ações afirmativas em universidades nos EUA. A principal conclusão é que, embora negros e hispânicos tenham ganhado terreno em instituições menos seletivas, as políticas não foram tão eficientes quando o universo considerado é o das 100 escolas de elite (públicas e privadas). Na verdade, nessas instituições, embora a proporção de negros e hispânicos tenha crescido, a sub-representação desses grupos em relação à população em idade universitária aumentou quando comparada aos anos 80. Os brancos e asiáticos, que já estavam super-representados em 1980, ficaram ainda mais.

Na elite da elite (as oito escolas da Ivy League), a proporção de brancos matriculados caiu e a de asiáticos disparou. E provavelmente teria disparado mais, não fossem ações afirmativas. Um grupo de alunos asiáticos está processando Harvard, acusando-a de discriminá-los para beneficiar membros de outras etnias.

A questão central, porém, é outra. Por que 35 anos de ações afirmativas não foram suficientes para produzir uma paisagem de equilíbrio? Para especialistas, a persistência da sub-representação indica que apenas lidar com o acesso à universidade não basta. Para realmente promover a equidade, é preciso atuar no nível da pré-escola e do ensino fundamental.

Fonte: Folha de S. Paulo

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

SE CABRAL SAÍSSE ÀS RUAS

SE CABRAL SAÍSSE ÀS RUAS
Ruy Castro

Pena o ex-governador Sérgio Cabral estar atrás das grades e sem perspectiva de sair tão cedo. Se pudesse deixar a prisão nem que fosse por algumas horas e dar umas voltas pelo Rio, poderia observar em pessoa alguns efeitos que sua administração provocou na cidade que tantas vezes o elegeu. Embora esteja preso há apenas nove meses, Cabral não teria como ignorar as alterações em relação ao tempo em que ainda podia circular pelas ruas.

Ele estranharia a quantidade de placas de aluga-se, passo o ponto ou de liquidação para entrega das chaves nas fachadas dos prédios. Talvez não entendesse a proliferação de certo comércio informal em esquinas em que, até há pouco, isso seria impensável. Nunca houve, por exemplo, tanta gente vendendo livros e discos na calçada, nem roupas velhas, tipo brechó, e, agora, uma novidade: homens bem vestidos vendendo quentinhas, estocadas em carros estacionados.

E talvez Cabral se surpreendesse ao saber dos 4.154 estabelecimentos fechados e 2.062 empresas extintas apenas no primeiro semestre deste ano, incluindo até lojas de móveis, de vestuário e restaurantes que ele costumava frequentar. Algumas dessas grifes tinham mais de 60 anos —já existiam antes de ele nascer— e uma brava história de sobrevivência às crises do Brasil. Mas não sobreviveram a mais uma crise, agravada pela sua administração.

Cabral não pode nem alegar que só fez o que Lula e Dilma fizeram no plano federal: quebrar o Estado ao desobrigar empresas de pagar tributos —as famosas desonerações. Fez isto e mais, arriscando-se, como se sabe, a morrer com a boca cheia de diamantes.

Aliás, não lhe falem de Lula e Dilma. Réu em tantos processos na Lava Jato, ele não recebeu até agora nem uma palavrinha de apoio de seus padrinhos de recasamento com Adriana Ancelmo em 2010.

Fonte: Folha de S. Paulo

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

DOS MEUS LIVROS

Em Busca do Tempo Perdido - vol 7 - O Tempo Redescoberto - Marcel Proust

Comentário:
Numa espécie de exame de consciência, o narrador reconhece que a sua relação com Albertina fracassou devido ao seu “génio indeciso e impertinente”. Depois de tantas reflexões, de tantos fracassos e desilusões, ele parece chegar ao âmago da questão – entre indecisões e reflexões excessivas, ele deixou que o tempo o ultrapassasse; é o tempo que governa a vida, e não o pensamento. Mas agora, só pelo pensamento, pela memória, ele pode regressar a esse tempo perdido. Inicia-se aqui a grande luta: entre o tempo perdido e o tempo recuperado, reencontrado nos confins do pensamento. A dicotomia passado/presente é então substituída por uma outra: a dicotomia mundo real versus pensamento, como se estivéssemos perante dois mundos paralelos: o real e o pensado. 

Mas agora é o mundo real que se impõe com toda a sua crueza; é a guerra; a Primeira Guerra Mundial. A Grande Guerra. Nesse contexto não há espaço para o pensamento. A guerra abafa a memória e destrói o tempo ao eternizar o horror. Mas nos salões da aristocracia parisiense, tudo contínua igual, porque “a morte de milhões de desconhecidos traz apenas um arrepio, talvez menos desagradável que o causado pelas correntes de ar” (pág. 73). É a vulgarização da morte. Nos salões e nas discussões políticas isso pouco parece interessar. A alta sociedade parisiense tenta viver acima da guerra, mantendo as suas aparências, vícios e virtudes… mais aqueles que estas, diga-se. O próprio Charlus, germanófilo, tradicionalista, confessa: "perdemo-nos no diletantismo”.

Da mesma forma que Proust retrata as virtudes de grandes aristocratas como a Sra. de Guermantes, também retrata, com a mesma objetividade e crueza, os vícios incríveis de alguns outros nobres, como o quase louco Sr. de Charlus.

Mas este volume distingue-se dos outros, a meu ver, por ser o mais revelador da alma do narrador e, por extensão, do escritor; Marcel viaja constantemente para dentro de si, como se cada experiência vivida necessitasse de uma dimensão paralela, que ocorre interiormente.

Neste reinado do interior cabe um papel especial à arte. A arte é o único meio que permite ao homem sair de si mesmo e comungar com os artistas a múltiplas visões do mundo.

Mas o tempo é inexorável e é basicamente disso que trata este livro. Marcel sente a velhice aproximar-se e encara essa aproximação como uma espécie de derrota pessoal face ao Tempo. Na parte final do livro, à medida que as personagens principais envelhecem, o tom cada vez mais melancólico da linguagem vai sendo acompanhado por uma espécie de decadentismo latente. Sente-se a decadência da aristocracia. Com a derrota dos impérios na Primeira Guerra Mundial o novo mundo, é, definitivamente, da burguesia.

Mas o grande confronto dá-se no interior do narrador. Passado e presente, real e pensado, são elementos em conflito. A síntese há de encontrá-la Marcel na escrita; ele vai, finalmente, escrever o seu livro e nele se fará a fusão do Tempo; aí sim, será o Tempo reencontrado.

Fonte: aminhaestante.blogspot.com.br