domingo, 22 de outubro de 2017

APÓS O 'FAKE NEWS', O 'FAKE FOOD'

APÓS O 'FAKE NEWS', O 'FAKE FOOD'
Ronaldo Lemos

Vale do Silício, 2013. Um engenheiro apoiado por uma campanha de financiamento coletivo e investidores na área de tecnologia cria uma farinha chamada "soylent". Trata-se de um pó alimentar na cor "nude" que alega ter todos os nutrientes necessários para o metabolismo humano. A ideia é não precisar comer mais nada, bastando comer "soylent".

O marketing do produto é feito para quem não tem tempo. Seu slogan é: "E se você nunca mais tivesse mais de se preocupar com comida?".

O produto desperta imensa polêmica desde o primeiro dia. Rapidamente é incluído nos exemplos de "solucionismo tecnológico", termo criado pelo escritor bielorusso Eugeny Morozov para designar a crença de que a tecnologia pode funcionar como panaceia para problemas históricos que diversas instituições falharam em resolver. Como a fome.

Nova York, 2016. Um jornalista chamado Shane Snow publica um artigo propondo resolver o problema de prisões nos EUA. Para reduzir custos do sistema carcerário, ele sugere que os presos sejam conectados a aparelhos de realidade virtual. Além disso, sugere que toda a alimentação nos presídios seja substituída por "soylent", mais barato do que alimentos normais.

O artigo do jornalista desperta ira. É chamado por pessoas como Ethan Zuckermann, professor do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), de "a pior coisa que li neste ano".

São Paulo, 2017. O prefeito de São Paulo, João Doria, anuncia que vai distribuir um composto granulado, criado com alimentos próximos ao vencimento ou fora de padrão, para famílias em situação de carência alimentar que procurem os equipamentos sociais da cidade de São Paulo. O granulado, batizado originalmente de "Farinata", será doado por uma empresa, poupando recursos financeiros da prefeitura.

As mesmas críticas feitas às ideias de Snow aplicam-se ao caso de São Paulo.

Um composto como esse viola frontalmente as diretrizes da ONU sobre "alimentação adequada". Em relatório de 2015, esse termo foi definido como "o direito ao acesso regular, permanente e irrestrito a comida que corresponda às tradições culturais daquela pessoa e que assegure seu bem-estar físico e mental, respeitando sua dignidade".

Além disso, produtos assim nunca foram testados no logo prazo com relação ao consumo humano.

Por fim, nem o mais selvagem utilitarismo justificaria uma decisão como essa. Como lembra o professor de Harvard Michael Sandel, há elementos fundamentais à condição humana que não podem ser trocados por dinheiro nenhum.

Um dos aspectos mais perversos do "solucionismo tecnológico" é sua capacidade de lidar com os efeitos e ignorar as causas.

Em um mundo tomado por "fake news", cuidar de efeitos gera assunto e vídeos a serem compartilhados na internet, trazendo cliques e "engajamento". Já lidar com as causas dos problemas é trabalho árduo. Demanda tempo, paciência, sabedoria e resiliência. Qualidades que não saem bem na foto das redes sociais. Depois do "fake news", entramos na era do "fake food".

Fonte: Folha de S. Paulo

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