segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

A CIÊNCIA NÃO PODE SER ARROGANTE

Charge do Zé Dassilva (NSC Total)
A CIÊNCIA NÃO PODE SER ARROGANTE
Pablo Ortellado
O Globo

A ciência virou cavalo de batalha nas guerras culturais. De conhecimento metódico baseado no método experimental e na falseabilidade, se converteu em conjunto de verdades estabelecidas utilizadas para desqualificar as posições dos adversários no embate com o populismo de direita. Essa distorção da ciência não é apenas conceitualmente errada, também é ruim para ampliar a confiança nas instituições científicas e sua aplicação nas políticas públicas.

É surpreendente a maneira como a ciência vem sendo apresentada no debate público. Em nenhum outro lugar se vê isso tão claramente como na discussão sobre a Covid-19 — doença nova e ainda pouco conhecida, e vamos enfrentando-a à medida que aprendemos sobre ela. Por isso, quase tudo sobre a Covid-19 é incerto, as recomendações sobre o que fazer são provisórias e precisam ser continuamente revisadas.

DEBATE RASO – Mas como essas recomendações estão sendo questionadas pelo populismo, a reação antipopulista tem sido apresentá-las como se fossem mais certas e mais definitivas do que são, suprimindo as nuances e abafando o contraditório, o que não é bom para a política nem para a ciência.

Vimos isso no debate sobre como prevenir a disseminação da doença. A oposição não foi capaz de discutir com calma e nuance as políticas adotadas porque foi levada a fazer o contraponto ao bolsonarismo, que negava a gravidade. Se aqueles que negam as evidências estão propondo esse debate, então todas as suas posições estão erradas de antemão e precisam ser descartadas como irracionais e anticientíficas.

Por isso, entre outras coisas, não fomos capazes de discutir com cuidado e ponderação o fechamento das escolas e não conseguimos revisar os protocolos de prevenção.

ESCOLAS FECHADAS – O debate sobre as escolas não precisava apenas levar em conta o risco de infecção que a ciência indicava; precisava considerar os efeitos da suspensão das aulas na evasão escolar, no desemprego e na desigualdade, que a ciência também indicava. Nossa incapacidade de ponderar as duas coisas para se contrapor ao populismo prejudicou — e muito — os estudantes.

Os protocolos de prevenção que eram muitas vezes atacados pelos bolsonaristas também não puderam ser revistos com calma, e o resultado é que até hoje tiramos a temperatura e passamos álcool gel nas mãos antes de entrar num shopping, e nos hotéis precisamos colocar luvas para usar o bufê.

Com mais tranquilidade no debate, poderíamos ter abandonado as medidas que foram se mostrando menos eficazes e nos concentrado nas mais importantes, como a ventilação dos ambientes e a distribuição de boas máscaras.

EM NOME DA CIÊNCIA – O mais grave, porém, não é que o debate polarizado nos tenha impedido de enxergar e explorar as nuances, mas que o tenhamos feito em nome da “ciência”. Em nome da ciência criamos verdades definitivas imaginárias e desqualificamos as preocupações de uma parcela da população, aumentando o problema que deveríamos enfrentar.

O bolsonarismo está se aproveitando de uma crise de legitimidade das instituições e fomentando e organizando a desconfiança popular nas instituições que produzem a ciência. Nossa resposta não pode ser a ampliação do problema, arrotando autoridade científica contra os adversários, transformando a ciência numa instância validadora de verdades categóricas.

Se um argumento que parece absurdo é apresentado no debate público, é preciso respondê-lo, e nunca dizer que a questão é ridícula e já foi estabelecida pela ciência. Para enfrentar a desconfiança populista nas instituições, é preciso discutir cada argumento com paciência democrática e nunca cessar o trabalho de convencimento respeitoso.

Fonte: Tribuna da Internet

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