quarta-feira, 30 de outubro de 2019

A SIMPATIA

A SIMPATIA
Por Sérgio Jockymann

Pois, tersol em Vila Velha nunca durou mais que um dia. Era mal aparecer e já todo mundo corria ou para Siá Maria ou para Siá Morena. As duas possuiam gatos milagrosos. Era passar a ponta do rabo de um dos bichos no tersol, atirar o bicho pelas costas e no dia seguinte, o olho estava limpo. No princípio, qualquer gato era capaz de realizar a façanha.

Depois passou um baiano por Vila Velha que ao saber da simpatia balançou a cabeça e disse que estava tudo errado:

- Só dá certo com gato virgem.

Todo mundo riu, mas o baiano estava certo porque no dia seguinte já o primeiro gato falhava e naquela semana a gata da dona Juliana, que tirava tersol até no olhar, fracassou - oito vezes seguidas. Foi isso que decidiu Siá Maria a fazer um estoque de gatos virgens. Siá Morena, que morava na casa ao lado, viu aquilo e já separou uma ninhada. Durante as primeiras semanas, as duas trocaram informações científicas e após algumas experiências, chegaram à conclusão que gato virgem era uma boa porcaria e que só gata donzela até por dentro dos olhos, conseguia curar tersol com a ponta do rabo. Imediatamente, todos os machos foram expulsos e as fêmeas trancadas a sete chaves. No mês seguinte, as duas tiveram uma discussão a respeito de cor das gatas, com Siá Morena teimando que bichana tinha sempre três cores e Siá Maria insistindo que as boas só tinham uma. No meio da discussão, Siá Maria falou mal da gata de Siá Morena e as duas deixaram de se falar para o resto da vida. Ter-se-iam falado logo em seguida, se Siá Maria não tivesse provado que estava certa, criando uma gata branca de ponta a ponta, que revelou uma eficiência fantástica no combate aos tersóis. Imediatamente, os doentes de Vila Velha abandonaram as gatas tricolores de Siá Morena, que por puro despeito anunciou uma nova descoberta:

- Gata preta cura pra toda vida.

Só que não havia meio de nascer uma gata preta. Siá Morena realizou todas as cruzas possíveis, até que conseguiu uma toda ruiva, com olhos cor de rosa, mas preta não houve jeito. A gata ruiva curou um tersol, mas no segundo, quando foi jogada pelas costas, abriu as unhas e desceu deslizando pelas costas do paciente, que deu um urro e apanhou a gata no ar e acabou com ela.

Como uma desgraça nunca vem sozinha, na semana seguinte, a Caolha de Siá Maria deu à luz a três gatinhos mortos e uma maravilhosa gata todinha preta. A danadinha nem tinha aberto os olhos e já curava tersol como gente grande. Depois, quando jogada pelas costas, tinha a bondade de descer como uma pluma sem sequer tocar no paciente. Siá Morena caiu da cama de pura inveja e perdeu metade de sua renda. Só não ficou na miséria, porque continuava sabendo tirar berne como ninguém. Mas aquilo da gata preta ficou trancado na sua garganta. Não passava dia sem que ela ruminasse planos tremendos para acabar com aquela amaldiçoada:

- Jogo carne envenenada pra ela.

Siá Maria, no entanto, hospedava a gatinha preta, Tintura, num quarto especial, no meio de pelegos e com um caixote de areia limpa para as necessidades da vida. Entrar ali, só Siá Maria e o paciente, assim mesmo com mil cautelas. A Tintura tratada a peito de frango e filé de boi, não queria outra vida. Cresceu, tomou corpo e parecia destinada ao celibato, até a noite em que arrepiou o pelo e começou a dar miados infernais. Siá Maria acordou em prantos e passou o resto da noite tentando acalmar a Tintura que não queria aquela espécie de calma. Nos dias seguintes, se jogou contra a porta, tentou cavar um buraco no assoalho e quando foi chamada a prestar serviços médicos, arreganhou os dentes e soprou pelo nariz. Siá Maria arrancou os cabelos, mas não conseguiu fazer nada. O veterinário veio e deu o veredito:

- Está no cio.

Um mês durou aquela maluquice, até que assim como veio passou e a Tintura voltou à oftalmologia. Mas, nesta altura, os miados já haviam posto idéias terríveis na cabeça de Siá Morena. Uma noite, três meses mais tarde, mal ela ouviu os miados da Tintura, saltou da cama e apanhou um gato muito safato que tinha em casa, o Xavier. Com Xavier debaixo do braço, pulou a cerca e forçou a janela do quarto da Tintura. Quando Siá Maria notou a diferença dos miados da gata e correu para o quarto, já era tarde. A Tintura perdia a castidade com uma indecência revoltante. Siá Maria transtornada passou a mão no quarenta e quatro do marido e meteu seis balas em Siá Morena. No julgamento, enfrentou o júri de cabeça erguida e declarou:

- Só tava defendendo a saúde de Vila Velha.

Como Siá Morena tinha escapado, foi absolvida. Mas nem teve ânimo para comemorar, porque a Tintura não só não sabia mais curar tersol, como não fazia outra coisa na vida a não ser correr atrás do Xavier. E gata preta nunca apareceu outra em Vila Velha, virgem ou não virgem. Três meses depois, em lugar da gata, veio um oculista, que não precisava de manter o mesmo jejum. (JOCKYMANN. Sérgio.Vila Velha, Porto Alegre: Editora Garatuja, 1975, p. 11)

Nenhum comentário:

Postar um comentário