terça-feira, 12 de novembro de 2019

ROMANCE FORENSE

A PENHORA DO CRUCIFIXO
Charge de Gerson Kauer
Tempos do velho Foro Cível da Rua Siqueira Campos nº 1044, em Porto Alegre, cada vara cível tinha um oficial de justiça próprio. Dentre os meirinhos, um se notabilizava pelo afeto com que tratava os advogados e, principalmente, pelas "aulas" de Direito que dava aos bacharéis iniciantes, a quem costumava dizer que "lendo Pontes de Miranda se encontra solução para tudo".

Certo dia - ante a insistência de um novel profissional da Advocacia - o oficial foi cumprir um mandado de citação e penhora numa residência no bairro Partenon. Vislumbrando um sofá rasgado, cadeiras carcomidas pelo uso, um rádio que emitia som roufenho e um televisor obsoleto, o oficial constatou que pouco ou nada tinha para penhorar. 

Chamou-lhe a atenção, todavia, um crucifixo grande - com seus 60 cm. de altura - pendurado na parede principal da modesta sala. Como não queria voltar com a diligência negativa, o oficial informou ao casal devedor que estava penhorando aquele símbolo religioso, mas que deixaria os devedores como depositários do bem.

E lascou a certidão: "Dirigi-me à residência dos executados e lá - nada mais encontrando o que pudesse servir para a garantia do Juízo - penhorei um crucifixo, em material latonado amarelo, brilhante. A marca do objeto é INRI - sem número de série, em bom estado de conservação".

Recebendo os autos, o bem falante juiz da causa - que anos depois chegou à presidência do TJRS - avaliou que tinha, ao seu alcance, uma oportunidade de pilheriar com o oficial, a quem mandou chamar no gabinete.

- Veja, seu Carlos, admiro muito o seu trabalho, mas crucifixo jamais teve ou terá número de série. Ademais, INRI nunca foi marca. 

E puxando da gaveta o livro "À margem do Direito", obra de Pontes de Miranda que trazia ensaios de Psicologia Jurídica, o juiz fez de conta que dali extraia a leitura professoral que, na verdade, havia decorado pouco antes de um livro de Religião. E falou convincente:

- INRI é o acrônimo de Iesus Nazarenus Rex Iudeorum; ou seja, Jesus Nazareno Rei do Judeus. Segundo os evangelhos, foi o título que Pilatos ordenou que fosse fixado na cruz onde Jesus Cristo foi morto. Conforme o Evangelho de São João, Pilatos teria feito redigir o texto em latim, grego e aramaico. 

E preparava-se o magistrado para seguir explicando a "marca INRI" quando o oficial - que era conhecido também pelas mentiras que aplicava - atalhou:

- Doutor, não me crucifique! Eu já conhecia isso também de um outro livro - Tratado de Direito Privado, de Pontes de Miranda. Se não me engano isso está escrito na página 377, do tomo 1...

O oficial de justiça pediu desculpas ao juiz e saiu de fininho de sua sala, para retificar a certidão: "Penhorei um crucifixo, em material latonado amarelo, brilhante. O proprietário me disse que é banhado a ouro. A insígnia INRI ostentada pelo objeto está explicada em duas obras do jurista Pontes de Miranda".

* * * * *

Algumas semanas depois, o credor não aceitou a penhora do crucifixo. O objeto permaneceu imóvel na parede da casa dos devedores. Sem outros bens que pudessem ser constritos, o credor desistiu da execução.

Fonte: www.espacovital.com.br

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