quarta-feira, 6 de novembro de 2019

O CORNETEIRO

O CORNETEIRO
Por Sérgio Jockymann

Pois, quando o Batalhão Provisório de Vila Velha recebeu ordem de marchar para São Paulo, o coronel Joaquim decidiu que estava na hora de fazer pelo menos uma ordem unida. Chamou o major Eustáquio do Estado Maior e disse:

- Olha, Eustáquio, quando corre bala é cada um por si e Deus por todos. Aí tem que haver um corneteiro dos bons, pra levantar as guampa do pessoal.

Ora, só havia em Vila Velha um corneteiro capaz de deixar todo mundo de guampa erguida, o Salustiano, preto como carvão, que segundo se dizia era capaz de tocar aqui e ser ouvido no inferno. Em trinta e dois o Salustiano andava meio cansado de revolução e foi com uma certa relutância que atendeu ao convite.

- Se for pra tocar, seu Joaquim, tou aí. Mas se for pra peleia, me faça o bem de chamar um mais novinho.

O coronel Joaquim prometeu de pés juntos que jamais em momento algum o corneteiro seria convocado para a luta.

- Tu sabe como é, Salustiano. É só pra botar ordem na bagunça.

- Pra peleia, eu dou um toque meio puxando a gaita. Pra retirada eu dou um toque puxando a mula.

Dito e soprado e todo mundo entendeu de primeira. De fato, o toque puxando a gaita arrancava o pessoal do chão e o jogava pra frente e o toque puxando a mula, fazia todo mundo dar meia volta. Agora nota por nota os dois eram a mesma coisa. Como nota por nota, o toque servia para tudo desde alvorada até silêncio, passando por rancho, continência e fosse lá o que fosse. O Salustiano soprando a corneta, o Batalhão do Provisório cruzou Santa Catarina, subiu o Paraná e teve o primeiro combate em solo paulista, onde se cobriu de glória, após uma carga de gritaria que acabou com a moral do inimigo. O Batalhão se portou tão bem que foi incorporado a uma Força especial, que deveria travar uma violenta batalha na semana seguinte. O coronel Joaquim concordou com tudo, mas quando falaram em corneteiro, ele saltou:

- Tem que ser o Salustiano.

O general comandante disse que dispunha dos melhores corneteiros do país e recusou o oferecimento. O coronel Joaquim ficou ainda remanchando, mas não conseguiu nada, pelo que foi para a tal batalha com o pior dos humores.

- Não ta me cheirando bem esse negócio.

De fato, o negócio não era de cheirar bem, porque o Batalhão devia recuar para atrair o inimigo e logo em seguida avançar e tudo isso seria ordenado através de vibrantes cornetadas. O cabo Salustiano magoadíssimo se recusou a seguir com o Batalhão e a moral da tropa não andava das melhores. Mesmo assim, o Batalhão tomou sua posição e ficou à espera do sinal. Quando soou a primeira cornetada, como um homem só, o Batalhão se jogou para frente, enquanto os oficiais se jogavam para trás. Nesta altura, o Quartel General danado da vida, achou que o mal estava feito e mudou o toque para avançar. O Batalhão sentiu a mudança e como um homem só deu meia volta e recuou. O Estado Maior estupefato viu suas linhas se desfazerem e ordenou retirada. Foi acorneta dar a ordem e o Batalhão inverteu a marcha e se lançou num ataque. 

Nesta altura, o lado paulista ordenou retirada e quando as séries de cornetas começaram a soprar furiosamente, o Batalhão Provisório simplesmente não soube o que fazer. O único oficial, ainda metido na tropa, era o Surdinho Campos que consultado teve uma resposta memorável:

- Que corneta?

O lado paulista quando viu os legalistas em retirada ordenou o ataque. O Batalhão Provisório achou que era a sua vez de atacar e arremeteu para frente. Nem deu dez passos e os paulistas tocavam em retirada, pelo que o Batalhão Provisório deu meia volta. No Quartel General, um coronel declarou guerra à Vila Velha e um general expediu cinco telegramas perguntando de que lado brigava o Provisório. Nessa altura, a frente ia e vinha e um corneteiro gaúcho descobriu a seu lado um corneteiro paulista e os dois por sinal estavam tocando retirada. Isso aconteceu no exato minuto que as forças de retaguarda descobriram que estavam na vanguarda e o pessoal do remuniciamento entregou quinze caixas de balas para os paulistas. Os dois quartéis generais diante disso resolveram se render e quando as cornetadas da rendição soaram, o Surdinho Campos cuspiu de raiva e baixou uma ordem:

- Para o raio que os parta todos os comandantes. Toca pra frente e só para em São Paulo.

Em menos de três horas, o Batalhão Provisório havia aprisionado cinco regimentos paulistas, duas seções de metralhadoras, dois regimentos legalistas e um pelotão maragato, detido sob protesto do seu comandante que dizia:

- Essa guerra é outra, seu estúpido.
No dia seguinte, o Batalhão de Vila Velha foi mandado devolta por pura inveja como disse o coronel Joaquim. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 14)

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