quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

CHARLES

CHARLES
Por Sérgio Jockymann 

Pois, era bater uma chuvinha e Vila Velha tinha sapo até no peitoril da janela. E foi assim que o Fidêncio conheceu o Charles, que era um sapo muito simpático e discreto, que comia besouros na porta de sua casa. O Fidêncio, numa noite de pensar na vida, deu com o Charles a caçar besouros com uma língua muito rápida e se tomou de encanto pelo bicho. Ali mesmo na soleira da porta, batizou o sapo:

- Charles.

Deu o nome, porque achou o sapo com jeito de mordomo inglês, o que era a mais pura verdade. Pelo menos o Charles tinha mesmo um ar vazio de criado inglês, que olha como se pensasse em coisas muito importantes, quando na verdade nem aprendeu ainda a pensar. O pessoal embirrou um pouco com o nome, mas nesta altura o Charles já até virava a cabeça quando era chamado. Foi pegando tanta confiança, que um mês depois entrava pela casa a dentro e ficava embaixo do lampião da sala comendo bichinho. O Fidêncio armou um pedaço de umidade dentro de casa e, depois de algumas tentativas, o Charles aprendeu a escapar do calor, se aboletando naquela terrinha molhada. E ficava ali, ouvindo o Fidêncio que andava com muitos problemas na vida e tinha o costume de falar com o sapo, começando sempre por dizer:

- Charles, meu filho, tu vê bem o que aconteceu.

O sapo pregava os olhos nele e nas vírgulas, dava uma piscada cumprida, que lembrava mesmo um mordomo inglês de um filme de Shirley Temple. Ora, foi aí que caiu em Vila Velha um francês agrimensor, que no primeiro dia de chuva olhou aquela saparia toda e lambeu os beiços. No dia seguinte, como a chuva continuasse, saiu de rede a juntar rã pela cidade inteira. Como ser francês em Vila Velha exigia pelo menos um litro diário de conhaque, lá pelas tantas o Jacques não diferenciava muito sapo de rã, o que provocou comentários terríveis na cidade e um grande alarma no Fidêncio, que foi correndo para casa falar com o Charles:

- Tu não me sai de casa, que aquele francês te come.

Naquela noite, Fidêncio não conseguiu dormir. Era fechar os olhos e já via o francês comendo as pernas do Charles. Seis da manhã, o Fidêncio saiu e foi bater na casa do Jacques, de dedo apontado:

- Comeu meu sapo, morre!

Deu as costas e saiu para casa com um ar de quem havia cumprido com o seu dever. O francês, ainda sofrendo os efeitos de um litro de conhaque, ficou estatelado na porta a perguntar o que diabo era aquilo. Só que perguntava em francês o que não ajudava em nada, porque Vila Velha não era dada a esses luxos de linguagem. Mas tanto o Jacques minhocou aquilo, que naquela noite resolveu bater na porta do Fidêncio. Foi atendido pela caseira, uma preta velha, meio cega, que não entendeu coisa alguma, mas abriu a porta.

- Se sente.

O francês ficou ali na sala fumando um cigarro e nisso o Charles sentiu fome, saiu do seu cantinho e veio comer cascudo embaixo do lampião. O Jacques, que tinha muita sensibilidade para batráquios, ficou extasiado com aquilo e durante uma hora nem falou. Mas o Charles que era um sapo muito ladino, cheirou algum perigo e de repente deu três saltos e sumiu. Dez minutos depois, sem sapo para distrair, o francês também se retirou e fez mal, porque cinco minutos após sua saída, o Fidêncio entrava. E como sempre fazia foi dar boa noite ao Charles e não encontrou o sapo. Tirou a caseira da cama e a preta velha tudo o que conseguiu explicar é que o francês tinha entrado na sala.

- Ele ainda tava lá encantado com o sapo.

Fidêncio deu um berro e saiu como um raio. Nem um minuto, batia na porta do francês.

- Meu sapo?

Jacques procurou desesperadamente uma palavra para demonstrar ao dono o quanto havia gostado das habilidades do bicho e achou uma infeliz:

- Gostoso.

Levou três bofetões na hora e mais três quando chegou ao meio da rua. Aí se pôs a berrar pelo cônsul em todas as línguas que sabia, o que não impediu que o Fidêncio carregasse com ele para casa do coronel e jogasse o desgraçado no chão, com uma séria acusação por cima:

- Esse gringo comeu meu sapo de estimação.

Ora, o coronel simpatizava muito com o Charles e vivia aconselhando ao Fidêncio que enviasse uma fotografia do sapo para o Correio do Povo, só para mostrar como Vila Velha era uma cidade culta, que tinha até um batráquio amestrado. Por isso, ficou danado de raiva e quando o francês tentou se explicar ele berrou:

- Você comeu um patrimônio da cidade.

E como andava uma revolução pelo país, aproveitou a ocasião para juntar o útil ao agradável.

- Prende o gringo, o dr. Luisinho e o Gaspar. Os três são espião paulista.

O Fidêncio disse que o dr. Luisinho não tinha nada a ver com o sapo, mas o coronel não concordou:

- Isso é o que tu pensa. Conheço o home. Vai ver que até deu o endereço do teu sapo.

Mas isso não consolou o Fidêncio que voltou para casa com a sensação de ter perdido um filho. E estava ali chorando, quando o Charles entrou na sala muito sim-senhor e comeu dois cascudos.

- Charles meu filho!

E se pôs de joelhos juntando cascudo para o Charles comer. E só depois que o sapo vomitou um cascudo porque não se aguentava mais com o banquete, que Fidêncio pensou no francês.

- Tou fazendo injustiça.

Mas aí pensou um pouco e achou que o francês era um perigo permanente. Pelo que piscou o olho para o Charles e decidiu:

- Fica pelos teus irmão sacrificado.

E foi assim que o agrônomo Jacques foi expulso do país, com pleno consentimento do cônsul, que declarou ao embaixador:

- Ele teve a ousadia de me dizer que a culpa era de um sapo chamado Charles.

E o embaixador, imediatamente, pôs a culpa no conhaque nacional, que de fato não há francês que o tome impunemente. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 35)

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