quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

O MÉDICO

O MÉDICO
Por Sérgio Jockymann

Pois, nisso de montar a cavalo, cair do cavalo, subir no cavalo, há sempre um certo perigo, pelo que um terço da população de Vila Velha vivia recompondo os ossos. O dr. Wurtemberg ficou com tanta pratica, que só pelo gemido do paciente já sabia onde era a fratura. Isso naturalmente valia apenas para os casos comuns, porque duas ou três vezes por ano alguém conseguia descobrir um modo novo de partir os ossos e aí o dr. Wurtemburg se desesperava folheando os dois livros que possuía sobre o assunto. Essa demora para os casos graves abalou um pouco o prestígio do doutor, que passou a ser considerado perigoso para fraturas sérias. Justamente quando o prestígio do médico andava na fase mais crítica, o capitão Miltinho despencou do cavalo e foi de cabeça num tronco de árvore. Como caiu foi levado para a cidade, onde durante uma semana os dois médicos existentes procuraram em vão uma fratura. Não havia nem uma visível, mas nem por isso o paciente se dignava a falar. Ficava lançando olhares desesperados à família e a soltar uns roncos pavorosos que faziam a mulher e as filhas se persignarem arrepiadas. Essa situação durou um mês inteiro, com o dr. Wurtemburg opinando que o paciente estava definitivamente abobalhado e o dr. Galo insistindo que se tratava de lesão cerebral irrecuperável, o que afinal dava maios ou menos na mesma miséria. A coisa já estava virando folclore, quando seu Oliveira, do Hotel dos Viajantes, entrou como um furacão pela casa da família anunciando a novidade:

- Está na cidade o maior especialista argentino.

Cinco minutos depois era a vez da família invadir o quarto do dr. Morales, que recebeu os visitantes com um cavanhaque erguido e irritado.

- Que quiéren ustedes?

Dona Pérola chorou a história do marido e nem bem contou o último detalhe se jogou no chão e pediu de joelhos que o médico salvasse a vida do coitado.

- Pago o que o senhor pedir.

O cavanhaque estremeceu por alguns segundos e disse que desejava ver o paciente. Foi uma festa e a alegria da família era tão grande que o dr. Morales mal conseguiu examinar o capitão Miltinho, enquanto uma enxurrada de doces desabava sobre ele. Uma hora depois, ainda mastigando um doce de abóbora, disse que o caso era grave e que antes de mais nada, precisava conferenciar o com os outros médicos. A conferência foi muito difícil de acertar, porque o dr. Wurtemburg se sentiu ofendido e o dr. Galo se sentiu insultado. Finalmente saiu, mas durou apenas trinta segundos, porque o dr. Galo mal abriu a boca e já pôs em dúvida a qualidade de todas as Faculdades de Medicina do Prata e o dr. Morales respondeu com um comentário em castelhano que falava em mãe e quase que a história termina em tragédia. Isso no entanto fez com que o dr. Wurtemburg encarasse o dr. Morales com muita simpatia e convidasse o colega argentino para um jantar. Durante o jantar, o caso do capitão Miltinho foi discutido e a conclusão do dr. Wurtemberg foi uma só:

- O homem está em choque e na minha opinião precisa de outro choque para melhorar.

O dr. Morales perguntou porquê o segundo choque não havia sido dado e o dr. Wurtemburg contou:

- Andei errando muito nos últimos meses. Não estou em condições de falhar outra vez.

O dr. Morales pediu para examinar alguns livros de medicina e ficou nisso durante o dia inteiro. Na quinta-feira, percorreu os arredores da cidade e na sexta, estabeleceu suas condições:

- Veinte contos!

Houve um horror generalizado, alguns genros opinaram que mudo o sogro era mais barato, mas dona Pérola disse que a recuperação do seu marido não tinha preço e concordou:

- Tá pago.

Na manhã seguinte, o capitão Miltinho foi levado para a Cascatinha do Bode, amarrado numa espécie de cruz sem cabeça e o dr. Morales ordenou que o doente fosse mergulhado de golpe na água da cachoeirinha. Dona Pérola teve um desmaio, porque era agosto e fazia um frio de pelar a alma. Mas como o cavanhaque do doutor Morales não admitia palpites, os genros lançaram a cruz com o doente, com doze laços, seis de cada lado, puseram em cada ponta do laço dois homens e mal o dr. Morales deu o sinal, mergulharam o doente no jato d´água. No terceiro mergulho, o berro que o capitão Miltinho deu dava para se ouvir a três léguas de distância. E antes que o quarto fosse feito, ele começou a injuriar toda a descendência do pessoal, pelo que todo mundo caiu de joelhos e agradeceu a Deus pelo milagre. O dr. Morales recebeu os vinte pacotes e teve a mão beijada por três gerações. Dois dias depois, a cidade ainda comemorava o grande feito médico, quando o delegado recebeu um pedido de prisão e correu à casa do coronel.

- Hernandes ou Muñoz ou Varga ou Rivera ou Morales, procurado por roubo, vigarice, estelionato e mais um negócio aqui que não sei o que é.

- É o homem?

- É o homem.

O coronel pensou um minuto e deu o veredito.

- Olhe, delegado, um homem é o que faz e não o que fez. Deixe que siga a vida dele.

E foi assim que o dr. Morales foi homenageado com um banquete, onde falou sobre os milagres da medicina, sobre a competência do dr. Wurtemburg e finalmente, olhando para o lado do dr. Galo, sobre a alta qualidade dos cursos da Faculdade de Medicina de Buenos Aires... E cinco anos depois, quando o delegado, demitido do posto quis contar a verdade, foi preso por agitação política, porque um homem de valor como o capitão Miltinho, candidato a vice-prefeito, não podia ter sido curado por um vigarista. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 40)

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