sábado, 23 de outubro de 2021

CONSUMO X CONSUMISMO

CONSUMO X CONSUMISMO
Zygmunt Bauman

Tentamos achar nas coisas, que por isso nos são preciosas, o reflexo que nossa Alma projetou sobre elas. Marcel Proust

Consumimos! Desde a aurora de nossa existência, rotineira e ininterruptamente, da hora em acordamos ao momento em que vamos dormir, antes mesmo do nascimento e até após a morte, consumimos.

Mas, uma coisa é o consumo de bens necessários e até indispensáveis à vida e ao bem estar (morar, comer, beber, dormir, saúde, estudos, lazeres… prazeres!); Outra é o consumismo.

Desenfreado, o consumismo excede a necessidade, culminando na profusão de mercadorias, na ostentação do luxo e num portentoso descarte de lixo.

Analisar o fenômeno do consumismo é fundamental para que possamos compreender um aspecto funesto e nevrálgico da sociedade em que vivemos.

Da obra do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “Vida Para Consumo – A transformação das pessoas em mercadoria” trazemos uma breve reflexão sobre o capítulo intitulado “Consumo versus Consumismo”.

Segundo o autor, o fenômeno do consumo “tem raízes tão antigas quanto os seres vivos (…) é parte permanente e integral de todas as formas de vida (…)”.

Mas, enquanto o consumo constitui uma característica e ocupação de todos os seres humanos enquanto indivíduos, o consumismo, alerta o estudioso, é um atributo da sociedade.

Não precisamos de uma lupa superpoderosa para observar que, nos últimos séculos, galopando cada vez mais em mega escala, rumamos a um consumismo vertiginosamente apoteótico: de uma natural necessidade de segurança, conforto e, até sobrevivência mesmo, o que justifica o consumo, ao abismo propulsionado do vício do consumismo.

Governado por nossas ‘vontades’, o consumismo se tornou o propósito de nossa existência quando nossa capacidade de ‘querer’, ‘desejar’, ‘ansiar por’, passou a sustentar a economia (oikós = casa + nomós = norma) mediando o convívio humano.

Bauman afirma que o ‘consumismo’ é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros (neutros quanto ao regime), transformando-os [e transmutando-os] na principal força propulsora e operativa da sociedade.

O ‘consumismo’ chega, diz ele, quando o consumo assume o papel-chave que na sociedade de produtores era exercido pelo trabalho.

Passa a ser central quando “a capacidade profundamente individual de querer, desejar e almejar deve ser, tal como a capacidade de trabalho na sociedade de produtores, destacada [‘alienada’, o termo aqui empregado não em conotação pejorativa] dos indivíduos e reciclada/reificada numa força externa que coloca a ‘sociedade de consumidores’ em movimento e a mantém em curso como uma forma específica de convívio humano, enquanto ao mesmo tempo estabelece parâmetros específicos para as estratégias individuais de vida que são eficazes e manipula as probabilidades de escolha e conduta individuais”.

Ou seja, o coletivo mais que se sobrepõe: dita o modus vivendi/modus operandi do indivíduo que se afoga, ‘engolfado’ pelo ‘Todo’.

A revolução consumista, diz o sociólogo, é uma questão que exige investigação mais atenta, diz respeito ao que ‘queremos’, ‘desejamos’ e ‘almejamos’, e como as substâncias de nossas vontades, desejos e anseios estão mudando no curso e em consequência na passagem ao consumismo.

Equivocadamente, pensamos que os consumistas se empenham pela apropriação e acumulação de objetos pelo conforto e/ou respeito que outorgam a seus donos, mas, embora essa possa ser a principal motivação, na verdade, foi “um tipo de sociedade comprometida com a causa da segurança estável e da estabilidade segura, que baseia seus padrões de reprodução a longo prazo em comportamentos individuais criados para seguir essas motivações” que serviu de esteio para alicerçar a pedra fundamental do consumismo.

Àquela em que Bauman nomeia fase “sólida da modernidade” foi basicamente orientada para a segurança e, norteada por esse anseio, “apostou no desejo humano de um ambiente confiável, ordenado, regular, transparente e, como prova disso, duradouro, resistente ao tempo e seguro…”.

Lícito, sem dúvida, todo esse afã constituiu a matéria-prima convincente e “bastante conveniente para que fossem construídos os tipos de estratégias de vida e padrões comportamentais indispensáveis para atender à era do ‘tamanho é poder’ e do ‘grande é lindo’: uma era de fábricas e exércitos de massa, de regras obrigatórias e conformidade às mesmas, assim como de estratégias burocráticas e panópticas de dominação que, em seu esforço para evocar disciplina e subordinação basearam-se na padronização e rotinização do comportamento individual (…)”.

Assim, afirma o renomado sociólogo, foi-nos incutido que a posse de um grande volume de bens garantiria uma existência segura, imune aos caprichos do destino: “Sendo a segurança a longo prazo o principal propósito e o maior valor, os bens adquiridos não se destinavam ao consumo imediato – pelo contrário, deviam ser protegidos da depreciação ou dispersão e permanecer intactos”.

Não era exatamente pelo desfrute imediato que ansiávamos, ao contrário, esse modelo preconizava que se adiasse (quase indefinidamente) a fruição dos bens arduamente conquistados, acumulados e estocados.

No começo do século XX, o ‘consumo ostensivo’, diz ele, portava um significado bem distinto do atual: “consistia na exibição pública de riqueza com ênfase em sua solidez e durabilidade, não em uma demonstração da facilidade com que prazeres imediatos podem ser extraídos de riquezas adquiridas (…)”.

Bens resistentes e preciosos, como joias e palacetes ricamente ornamentados, “Tudo isso fazia sentido na sociedade sólido-moderna de produtores – uma sociedade que apostava na prudência, na durabilidade (…)”.

Mas o desejo humano de segurança e os sonhos de um ‘Estado estável’ definitivo não se ajustam a uma sociedade de consumidores, alerta Zygmunt Bauman: “(…) o consumismo, em aguda oposição às formas de vida precedentes, associa a felicidade não tanto à satisfação de necessidades (…), mas a um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por sua vez, implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos destinados a satisfazê-la”.

A insaciabilidade – maldição de Tântalo! –, permeia nosso ambiente líquido-moderno, inóspito ao que é estável, à placidez de um ‘Tempo Eterno’.

O pensador Stephen Bertman cunhou os termos ‘cultura agorista’ e ‘cultura apressada’ para denotar a maneira como vivemos atualmente: “O consumismo líquido-moderno é notável, mais do que por qualquer outra coisa, pela (até agora singular) renegociação do significado do tempo”. Ser feliz? Só se for para já!

Nem cíclico, tampouco linear, o tempo agora é pontilhista[1]: “(…) fragmentado, ou mesmo, pulverizado numa multiplicidade de ‘instantes eternos’ – eventos, incidentes, acidentes, aventuras, episódios –, mônadas contidas em si mesmas, parcelas distintas, cada qual reduzida a um ponto cada vez mais próximo de seu ideal geométrico de não-dimensionalidade”.

Agora, imediatamente. E o motivo da pressa é, em parte, o impulso de adquirir e juntar. Mas o motivo mais premente que torna a pressa de fato imperativa é a necessidade de descartar e substituir, aponta Bauman. Entediante, esse enfadonho ‘viciante círculo vicioso’ gera angústia, melancolia.

Mesmo os que encontram uma real necessidade de algo, “logo tendem a sucumbir às pressões de outros produtos ‘novos e aperfeiçoados’”. Vem-nos à mente a imagem do cão correndo em círculos, a perseguir o próprio rabo.

E, ao “sentir a infinidade da conexão, mas não estar engatado em coisa alguma”, sobrevém sorrateira melancolia, o que Bauman aponta como sendo a aflição genérica do consumidor.

Autora: Luciene Felix


Nota

[1] – “Fazendo uma analogia com o movimento pontilhista de mestres como Sisley, Signac ou Seurrat, Pissaro ou Utrilo”.

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