quarta-feira, 20 de outubro de 2021

QUANDO SE RONDA OS TRÊS DÍGITOS

QUANDO SE RONDA OS TRÊS DÍGITOS
Ruy Castro

Certas tarefas comuns tornam-se proezas dignas de serem adotadas como modalidades olímpicas

O escritor Hersch Basbaum estava lendo outro dia sobre os 12 trabalhos de Hércules. Mesmo fascinado pelas proezas do mitológico herói —derrotar um javali, um leão gigante, uma corça com chifres de ouro, uma serpente de nove cabeças, aves carnívoras e outras bestas também mitológicas—, Hersch se perguntou se Hércules, tendo chegado aos nossos dias, daria conta de certas tarefas que nós, os heróis modernos, temos de encarar o tempo todo: calçar as meias, fechar o cinto das calças, vestir ou tirar os jeans e esvaziar a bexiga de uma única vez. Essas, sim, são dignas de lenda.

Na verdade, os menores gestos se tornam dignos de lenda quando se ronda os três dígitos, em peso ou em idade. Há anos, João Ubaldo Ribeiro promoveu o ato de amarrar os cadarços do tênis a modalidade olímpica. O compositor Moacyr Luz acaba também de propor uma prova quase mortífera, reservada só à categoria master: morder maçãs. E Luis Fernando Veríssimo nunca entendeu o fuzuê pela descoberta do pré-sal, se ele, por ordens médicas, já estava havia muito no pós-sal.

Li em algum lugar que você sabe que está ficando velho quando para de criticar os mais velhos e começa a criticar os mais novos. Ou quando, não importa para onde vá, bota um suéter na mala. Ou quando, no seu aniversário, as velas passam a custar mais caro do que o bolo. Ou quando os seus sonhos eróticos começam a ser reprises. Para um amigo meu, foi quando, depois de longa carreira usando drogas escondido da polícia, ele se viu, nos fundos de um Bob’s, tomando um milk-shake escondido da mulher.
O querido Joel Silveira, ao se aproximar dos 90, disse, empolgado: “Um velho desejo meu, evitar o futuro. Estou quase conseguindo!”.

E já contei essa história uma vez. Ao me ver na rua de manhã bem cedo, um veterano de Ipanema perguntou: “Vindo do botequim, Ruy?”. Respondi: “Que nada. Vindo da farmácia!”. Aonde tinha ido, claro, para comprar um par de havaianas.

Fonte: Folha de S. Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário