sábado, 22 de abril de 2023

BORIS FAUSTO NÃO VIU O BRASIL DAR CERTO. ALGUM DE NÓS VERÁ?

Sérgio Rodrigues

Uma conversa com o grande historiador sobre crime e (falta de) castigo

"Nunca fui pessimista, mas nós nos metemos numa sinuca e o Brasil vai demorar a dar certo, se der. Eu não verei mais." A frase ouvida de Boris Fausto em 2019, na única ocasião em que conversamos, me veio à memória na terça (18), quando soube da morte do autor de "A Revolução de 1930". Boris viveu 92 anos e não viu o Brasil dar certo. Algum de nós verá?

Em maio de 2019, procurei o grande historiador para entrevistá-lo sobre o livro que ele estava lançando. "O Crime da Galeria de Cristal" (Companhia das Letras) era um de seus empolgantes exercícios de "pequena história" em torno de assassinatos de grande repercussão na São Paulo do início do século 20.

Fui recebido com a gentileza que, vim a saber, era típica dele. Gentileza real e não simples polidez, marca de quem não perde o interesse genuíno pelo que o interlocutor tem a dizer. Descobrir nossa paixão comum pela literatura policial realista de Dashiell Hammett e Raymond Chandler foi uma festa.

O governo Bolsonaro estava começando àquela altura e, em contraste com o presente atribulado mas esperançoso em que Boris Fausto nos deixa, o pessimismo dos brasileiros cevados na cultura humanista ganhava dimensões épicas.

Como tinha sido possível descermos tão baixo? Naquele momento, as conversas (alguém já se esqueceu?) costumavam girar em torno disso. "O Brasil já teve um sociólogo de direita como Oliveira Vianna", lembrou meu interlocutor, "mas hoje não há ninguém que se aproxime da envergadura intelectual dele. Quem é o guru intelectual dessa gente, Olavo de Carvalho? Faça-me o favor!".

Por falar em pistolagem: a criminalidade não estava apenas no centro do livro que era nossa pauta. Um dos interesses acadêmicos reiterados de Boris Fausto, algo que ele acreditava estar enraizado em sua infância de leitor de quadrinhos policiais, ela foi invocada como parte da explicação para a ascensão da extrema direita brasileira.

"A questão da insegurança pública, que é real e muito grave, foi uma das pautas que a esquerda menosprezou", afirmou ele. "Isso favoreceu a linha-dura, o pensamento de que é preciso matar os delinquentes. Segurança é um tema difícil de abordar porque existem múltiplos aspectos que vão além da dimensão punitiva e de repressão policial. Mas tem de tentar, né? A esquerda abriu mão, deixou no colo da direita."

O diagnóstico é sem dúvida pertinente, mas o autor de "Crime e Cotidiano" sabia haver muitas outras bolas naquela mesa de sinuca. Material suficiente para um livro de grande história, "aquela feita por grandes personagens e movimentos", em suas palavras.

Não houve tempo. Em seus últimos anos, o historiador se alternou entre o memorialismo e a história dita pequena, como a de "O Crime da Galeria de Cristal", que lhe permitia o prazer de "falar da cidade de São Paulo no início do século [passado], meu tema de preferência".

A veia memorialística teve seu ponto alto em "O Brilho do Bronze" (Cosac Naify), de 2014, um sensível diário de luto escrito logo após a morte da educadora Cynira Stocco, com quem o historiador foi casado por 49 anos. Ele qualificava de "muito diferente" a experiência de escrever esse livro: "A distância entre o objeto e minha própria vida nunca foi tão pequena".

Agora que a vida de Boris Fausto chega ao fim, restam seus livros para nos lembrar que, se o Brasil vem demorando a dar certo, há brasileiros que fazem a sua parte com louvor.

Fonte: Folha de São Paulo

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