quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

A ROLETA


Por Sérgio Jockymann

Pois, só Deus sabe o que era um depois-do-meio-dia em Vila Velha em pleno verão. Os mais valentes se jogavam na cama, afundavam o rosto no travesseiro e dormiam por puro medo de enfrentar a vida. Até os cães se deixavam ficar na primeira sombra e apenas os gatos mais sem-vergonhas atravessavam a rua. E assim mesmo iam num passo de morrer na primeira esquina. Só o vento soprava e soprava quente, empurrando o pó pelas ruas desertas. Doutorzinho de cidade agüentava quinze dias porque no décimo-sexto bebia o que houvesse para beber. Ora, às vezes, o Diabo, por puro desfastio, somava uma ressaca com uma insônia e o resultado era sempre desastroso. Os amaldiçoados iam para o Café Central, onde ficavam a meio pau, olhando os redemoinhos e jurando fugir da cidade tão logo desse quatro horas. E de fato, na hora da sesta, quem não sesteava ficava à mercê do diabo, que enchia a cabeça dos infelizes, com os mais horrendos pensamentos. Foi assim num depois-do-meio-dia de sábado, que o Nequinho se esparramou na cadeira do café e resmungou:

- Por que ninguém dá um tiro na cabeça para variar?

E o Carlinhos do outro lado da mesa achou que era uma boa, mas que nem todo mundo tinha coragem para fazer uma coisa dessas.

- Tutano não dá em covarde.

Nequinho modorrento levou meia-hora para descobrir que tinha sido insultado:

- Tenho tutano para vender a qualquer vagabundo.

Claro que uma discussão dessas às cinco da tarde já teria pelo menos um morto. Mas depois do meio-dia é sempre mais difícil arranjar disposição para tanta novidade. Por isso, o Carlinhos levou outra meia-hora dizendo que vagabundo era alguém da família de uma pessoa conhecida e desta vez o Nequinho se queimou de fato, porque respondeu em apenas cinco minutos.

- Prova a tua coragem, cafajeste!

Bem, aí o relógio deu três horas e os dois acordaram ao mesmo tempo. O Carlinhos largou o revólver em cima da mesa e propôs:

- Roleta russa só com uma virada.

Nunca houve roleta russa tão russa quanto a de uma só virada. A prova está que nem os russos pensaram nisso. Nequinho riu, tirou cinco balas do tambor, deixou uma azinavrada lá dentro, cuspiu para o lado e ofereceu o revólver ao Carlinhos.

- Roda o tambor que eu disparo primeiro.

Carlinhos rodou e estendeu o revólver. Nequinho deu o gatilho e seu ouviu um clique.

- Agora tu.

E sem rodar o tambor, Carlinhos deu novamente o gatilho e se ouviu outro clique. 

- Tá empate. 

Nequinho passou a mão no revólver e deu ao gatilho, pela terceira vez se ouviu um clique.

- Dois a um.

- Empato já, respondeu o Carlinhos.

E deu ao gatilho pela quarta vez e pela quarta vez o clique foi ouvido. Nesta altura seu Amâncio, que cuidava do balcão, acordou de repente e deu um berro.

- Pára!

E indignado protestou:

- Não quero sangue no café. Suja tudo.

O Carlinhos que vinha ostentando o dinheiro do pai disse que pagava a limpeza.

- Depois vai dar nome pro Café, Amâncio. Tu pode dizer ao pessoal que aqui nesta mesa, um sujeito meteu uma bala na cabeça.

O Amâncio pensou um pouco e achou que a publicidade era boa.

- É, o pessoal gosta disso.

Nequinho limpou a garganta com muito cuidado e perguntou de quantos tiros era o revólver.

- Seis, respondeu o Carlinhos.

- Então só tem dois agora?

Um vazio e uma bala.

Nequinho imediatamente se arrependeu da brincadeira.

- Carlinhos, quem sabe a gente toma um limãozinho e esquece isso?

O Carlinhos cuspiu para o lado e disse que quando começava uma coisa ia até o fim.

- Com bala ou sem bala.

O Nequinho então começou a falar no futuro, na vida que era bela, mas o seu Amâncio tossiu e discordou.

- Aposta é aposta. Homem vai até o fim.

Nequinho engoliu tão em seco, que na metade a língua trancou no céu da boca e o pomo de Adão subiu até o queixo e não queria descer.

- Um de nós dois tá frito.

- Tá mesmo, concordou o Carlinhos.

Tornou a cuspir para o lado e declarou:

- Mas macho é macho.

O Nequinho então levou o revólver à cabeça e tentou apertar o gatilho. Mas na hora do apertão, o dedo ficou mole.

- Tá faltando força, Nequinho?

Nequinho riu amarelo e fez outra tentativa. O cão foi lá atrás, teve um tremelique e bateu. Clique. Foi coisa de um segundo. O Nequinho deu uma risada gargarejada, meio risada meio choro e ficou molhado de suor. Estendeu o revólver tremelicando para o Carlinhos que estava sentado na cadeira muito duro. Seu Amâncio que era muito amigo da freguesia serviu um limãozinho.

- Não há o que eu não faça pra macho que morre como macho.

O Carlinhos quis rir, mas a musculatura da cara não se mexia. Avançou a mão devagarinho e tentou pegar o revólver. Não conseguiu. Aí então o Nequinho virou macho.

- Quem sabe eu seguro o revólver pra ti, agonizante?

O Carlinhos nem falou. Pegou o revólver com as duas mãos e levou à cabeça. Lançou um olhar comprido para a praça, fechou os olhos e apertou o gatilho. E no meio do Café explodiu um clique. Nequinho saltou e apanhou o revólver. Abriu o tambor e deu um murro na mesa.

- Bem que me disseram que bala azinavrada não presta. Picotou a espoleta e não disparou.

E foi aí que o Carlinhos começou a rir e começou a rir e uma hora depois ainda ria no consultório do doutor Wurtemberg e nem com três injeções deixou de rir, pelo que teve que ser levado para a estância ainda rindo daquele jeito. E só lá pela meia-noite que o riso foi virando choro e ele chamava pela mãezinha e pelo paizinho, até que caiu de joelhos na frente do crucifixo e jurou:

- Vou ser padre.

E para desespero da família foi mesmo, o que levou o Padre Ramão a dizer cinco anos depois, que os caminhos de Deus eram inescrutáveis e que a vontade divina, às vezes, se manifestava até numa bala de revólver. Só que cada vez que o Frei Carlos ouvia falar de azinavre caía de joelhos e ficava duas horas rezando e fazendo o sinal da cruz. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 80)

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