quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

O RÁDIO

Por Sérgio Jockymann

Pois, seu Valentim sempre foi um sujeito muito fechado. Nasceu assim, de lábios colados, que não abriu nem para dizer sim na frente do padre, porque, quando casou, respondeu a tradicional pergunta com um rápido aceno de cabeça. Dona Sofia havia nascido para ele, porque também era outra que nem para rezar abria a boca. Foram os dois viver lá no Capão Bonito, onde seu Valentim recebia as notícias do capataz com um sonoro: 

- Hum.

E foi tudo o que disse quando nasceu o segundo filho e o médico muito contristado lhe participou que dona Sofia havia encerrado a carreira de poedeira. Ela também não fez o menor comentário diante da notícia e com isso os dois continuaram a viver muito bem, criando os filhos com meia dúzia de palavras. O mais velho saiu ao pai e quando o capataz morreu mordido de cobra, tomou o seu lugar e era de ver a dificuldade que ele tinha para fazer o relatório semanal para o velho. Começou por espremer as palavras ainda inteiras, mas, ao cabo de cinco anos, inventou uma linguagem própria, que tornava os diálogos com o velho um primor de eloqüência. 

- Vêlhas, cinco.

- Hum.

- Ortas, duas.

- Hum.

E assim o pai ficava sabendo que haviam nascido cinco ovelhas e morrido outras duas. O caçula no entanto teve umas papagaices inexplicáveis e, tão logo fez onze anos, foi deportado para um internato, sob a acusação que fazia muito barulho. La ficou o Rubinho em Porto Alegre colecionando cursos, até que, quando se formou em medicina, decidiu enviar um presente de rei ao pai. Comprou um rádio Telefunken com bateria e tudo e despachou para Vila Velha com mil recomendações. O extraordinário é que o rádio resistiu aos trambolhões da viagem e, mal foi posto sobre a mesa, derramou uma conversarada em castelhano, que embasbacou a família inteira. Rubinho explicou que era uma emissora de Buenos Aires, mas não houve quem entendesse a explicação. Quando ele iniciou uma aula sobre o milagre da radiofonia, o pai congelou o discurso com um olhar aborrecido. Rubinho ficou danado da vida e voltou para Porto Alegre, não sem antes dizer para o irmão que a família toda estava doida. No dia seguinte, seu Valentim acordou cedo e ligou o rádio. Meia hora depois, dona Sofia sentou a seu lado e os dois ficaram na frente do aparelho até às nove da noite, quando o filho mais velho avisou que era hora de dormir.

- Nhã em mais.

Seu Valentim foi para o quarto, deitou na cama e ficou uma hora olhando o teto. Depois se virou para a esposa e comentou:

- Hum.

Ela suspirou duas vezes e os dois dormiram. Mal amanheceu lá estavam outra vez diante do aparelho. Seu Valentim fez a única coisa que sabia fazer: ligou o rádio. Depois chamou a mulher e os dois ficaram ali até às nove da noite, sem dizer palavra. Às vezes, quando tocava um tango conhecido, o marido olhava para a mulher e balançava a cabeça e ela sorria e suspirava. Almoço, café da tarde e jantar, tudo teve que ser servido ali mesmo, porque os dois não quiseram levantar e ir para a mesa. A empregada ficou preocupada, mas o filho deu de ombros e não comentou coisa alguma. Só avisou os dois às oito horas.

- Arde.

E durante uma semana essa rotina não sofreu a menor modificação. Os dois velhos acordavam às seis e iam para a frente do aparelho até às oito da noite. Dalí iam para o quarto, onde seu Velentim dizia seu hum e dona Sofia suspirava sua resposta e mais nada. No oitavo dia, no entanto, lá pelas sete da noite, a bateria se foi e o rádio após alguns estalidos se foi com ela. Seu Valentim abriu e fechou o volume, dona Sofia bateu de leve no aparelho, os dois encostaram o ouvido nele e depois se olharam sorrindo. O filho que vinha entrando estranhou a mudez do rádio e perguntou o que havia no seu vocabulário especial:

- Há?

Seu Valentim acendeu o cigarro lentamente, quebrou a cinza na unha do polegar, passou a mão pelos ombros da esposa e disse:

- Só queria ver quanto tempo durava esse falador.

Olhou a esposa, orgulhoso do longo discurso que havia pronunciado e arrematou:

- Morreu cedo, o infeliz.

E no dia seguinte mandou enterrar o aparelho com a bateria e pôs uma cruz em cima. Naquele momento de tristeza, dona Sofia teve um instante de piedade:

- Não sei como agüentou tanto tempo falando desse jeito.

E logo baixou a cabeça envergonhada de falar tanto. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 76)

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