quarta-feira, 4 de março de 2020

O OLHO


O OLHO
Por Sérgio Jockymann

Pois, a Tirana está morta e nesta altura não há mais como a ciência descobrir o que havia com ela. O fato é que todos os contemporâneos juram que haviam e até hoje em Vila Velha, quando um estancieiro se lembra dela, faz o sinal da cruz. Também ninguém sabe como começou. O que todo mundo sabe é que, um dia, a Tirana botou o olho no touro do major Matias e acabou com a descendência dele. Há uns que dizem que o touro do major Matias foi o primeiro, outros dizem que foi o segundo e ainda existe um grupo que jura que foi o terceiro. Numa coisa todos concordam: que foi somente porque a Tirana descobriu a potência do seu olho. E dizem que ela olhou para o touro do major Matias de propósito porque ele havia derrubado sua tapera. Ela olhou e olhou comprido, como fazia sempre nesses casos, cuspiu para o lado e disse:
- Pode capar que não tem mais serventia.
Não teve mesmo. A Tirana, junto com sua trouxinha de roupa, foi para a estância do seu Olegário e se aboletou numa tapera que havia perto do arroio. Ficou lá duas semanas até que o capataz deu com ela e acabou com a festa:
- Te some daqui.
Ela apanhou a trouxa, riu com dois dentes só e saiu a passo. Três semanas depois, no exato momento que o seu Olegário comprava um touraço Hereford por um dinheirão, ela apareceu, largou aquele olhar comprido que nem cobra, cuspiu para o lado e disse:
- Pode capar que não tem mais serventia.
Não teve mesmo. Deram até pólvora com cachaça para o bicho, mas não adiantou nada. Foi aí que a fama da Tirana cresceu e ela ficou mais abusada que louca. Nem bem o seu Aristides havia comprado um touro Devon, ela entrou na estância e avisou que ia ocupar uma tapera perto da invernada. Seu Aristides, que era um positivista de mão cheia e portanto absolutamente contrário a essas manifestações supersticiosas, debicou e disse que não podia.
- Vai arrastar teus tamancos longe daqui, Tirana.
Tirana caminhou desaforadamente até o curral, onde o touro mascava milho, olhou  primeiro para o Seu Aristides e depois espichou aquele famoso olhar. Seu Aristides riu, mas o touro se matou de cansaço e não conseguiu um só maldito descendente. Nesta altura, a Tirana morava onde queria e ninguém se metia com a vida dela. Foi então que naquela cachola sem parafuso, nasceu a ideia de fazer uma casa de material com porta e janela, como se ela não fosse doida nem pestilenta. Desenhou a casa num pedaço de papel e levou para o major Otacílio:
- Me dê uma igual.
O major Otacílio chegou a levantar o rabo de tatu, mas aí pensou num touro que havia comprado e desistiu. Olhou o desenho e saiu pela tangente:
- Tu merecia uma casa melhor, Tirana. Quem sabe tu bate lá na Associação de Criadores?
A Tirana achou a ideia boa e saiu, enquanto o major Otacílio se babava de tanto rir, pensando que a maluca andaria nem bem uma légua e esqueceria de tudo. Só parou de rir quando a Tirana entrou sala a dentro e pegou todos os destacados pecuaristas de Vila Velha de surpresa. Todo mundo prendeu a respiração, enquanto ela punha na mesa um desenho bem mais complicado que o primeiro e dizia:
- Tem que tá pronta antes do inverno.
O coronel perguntou quem tinha sido o besta a sugerir aquela visita e o major Otacíio teve que confessar, porque a Tirana estava com os olhos enfiados nele. O coronel bufou três vezes e concordou:
- Vai ser construída. O Otacílio paga a metade.
E construíram a casa. Só que nem bem ela ficou pronta, a Tirana exigiu uma pensão. A Associação discutiu o problema durante uma semana e só aprovou o projeto, depois que a Tirana acabou com a carreira dos touros dos dissidentes. Desde então, ficou empregada da Associação dos Criadores e, justiça seja feita, uma empregada bem modesta. Mas aí apareceu um paulista carregando uma beleza de touro da Argentina para Sorocaba e quando soube da história, chegou a rebentar o cinto de tanto rir. No dia seguinte, declarou no Café que a miolo mole da Tirana tinha mais juízo na cabeça do que todos os criadores de Vila Velha. O Clarimundo pediu licença ao coronel para fazer uma viúva paulista, mas o homem não deixou.
- Ele merece o pior.
Mandou chamar a Tirana e contou tudo timtim por timtim, concluindo emocionado:
É o prestígio da cidade que tá em jogo, Tirana velha.
A Tirana, que nesta altura, respeitava muito o próprio prestígio, concordou e foi até o caminhão do paulista. O Clarimundo levantou a lona e ela modorrou por cinco minutos aquele olhar pegajoso, enquanto o paulista se revirava de rir e dizia:
- Olha à vontade, maluca.
Jesus, Maria e José que depois de cinco minutos daquele olhar desgraçado, o touro fraquejou, teve uma espécie de soluço e bobeou para o lado. O paulista mudou de cor e mandou chamar o veterinário que examinou o bicho de cabo a rabo sem encontrar nada. O paulista não se conformou e mandou buscar uma vaca. O touro nem olhou para a coitada Aí, já em desespero, o paulista pediu licença para soltar o animal na invernada do coronel. Ao meio-dia, tiveram que arrancar o revólver da mão dele, porque o infeliz queria dar um tiro nos miolos. O coronel perguntou o que havia e o Clarimundo, pedindo desculpas às senhoras, revelou o segredo:
- O Coronel, o bicho não é homem.
No dia seguinte, a Associação dos Criadores aumentou a Tirana e o coronel mandou avisar que se ela olhasse mais de um minuto para um touro, seria abatida no local sem julgamento. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 90)

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