quarta-feira, 18 de março de 2020

O SISTEMA

Por Sérgio Jockymann 

Pois, o Belisário era epilético, desses de cair no meio da rua. Fora disso era pacata pessoa, cujo único defeito era fazer trocadilhos. Isto é, não bem fazer, mas repetir. O Belisário em toda sua vida, só conseguiu fazer cinco trocadilhos e gastou a existência toda a repetir o repertório. O mais famoso era o do sujeito que apanhado por uma tempestade foi parar num boliche e depois de três doses de cachaça declarou: 

- Já que tão todos reunidos vou falar de um sobretudo.

Os velhos acharam o trocadilho formidável, mas os novos começaram a dar trabalho para o Belisário, que após rir sozinho, tinha que explicar:

- Já que tão, jaquetão. Sobretudo é um assunto geral.

Aí os jovens espremiam um risinho e o Belisário se retirava muito vexado. Aliás, foi por causa do número cada vez maior desses vexames que subitamente o Belisário deu para ocupar seus dias com cálculos e mais cálculos. Comprava aquele papel de embrulho amarelo e enchia resmas e resmas com números enormes. Tanto escrevinhou que terminou despertando a atenção da cidade.

- O que é isso Belisário?

Ele sorria e abanava a cabeça. Ficou assim três anos, até que uma noite na Farmácia do seu Oscar, entrou com aquele seu jeito humilde e na primeira pausa da conversa, declarou:

- Descobri um sistema de ganhar na roleta.

Ora, o pessoal naquele momento estava empenhado em depor o Getúlio e por isso não deu muita importância à revelação. Mas Belisário não se deu por achado e passou três meses inteirinhos batendo na mesma tecla, sempre que alguém desse oportunidade. Nem assim conseguiu reconhecimento da população, pelo que se vestiu de negro e anunciou que estava de luto pela inteligência da cidade. Ficou assim até a quermesse do Padre Ramão, quando dois uruguaios instalaram uma roleta beneficente. Balisário esperou pelo sábado, entrou na barraca, pediu dois mil réis de fichas, o que era um despropósito, fez alguns cálculos e ganhou cinco vezes seguidas. Depois, trocou seu dinheiro, lançou um olhar de desprezo para os circunstantes boquiabertos e disse:

- Não aposto mais de pena.

No dia seguinte, o Padre Ramão nem conseguiu terminar o sermão, porque as senhoras comentavam escandalosamente a façanha do Belisário. O coitado por sinal, ficou tão emocionado que teve um ataque na porta de casa. Foi atendido por todos os médicos da cidade, porque o coronel anunciou que se tratava de um homem de valor incomensurável. Mal se restabeleceu e logo uma comissão de cidadãos de destaque sentou à volta da cama:

- Como é isso, Belisário?

Belisário sacudiu a cabeça e disse que era segredo. No dia seguinte, um caixote cheio de papéis foi roubado de sua casa por um grupo de desconhecidos conhecidíssimos, mas nem assim o mistério foi esclarecido. Seu Amaral teve que reconhecer que ninguém entendia a letra do Belisário.

- Mas se nota que tem coisa.

Durante uma semana se discutiu onde valia mais a pena aproveitar os talentos do Belisário e venceu a proposta do coronel:

- Punta del Este. Não fica bem tirar dinheiro aqui de dentro.

Belisário foi chamado, ouviu a proposta de viagem, estadia e mais vinte por cento e não aceitou.

- Quero metade.

Seu Amaral só faltou chorar. Seu Aristides lembrou em palavras comovidas as vezes que o Belisário havia sido erguido do chão por pessoas de destaque. Mas nem assim o Belisário se comoveu. E quando o coronel berrou que ele era um explorador, o danado teve um ataque fulminante. Foi uma correria, porque como disse seu Aristides:

- Imagine se o vivente bate as botas logo agora!

O Belisário não bateu, mas tampouco mudou de ideia. Nada menos de dezenove reuniões foram realizadas a portas fechadas, depois do que o coronel foi obrigado a admitir que metade era melhor do que nada. Na semana seguinte, escoltado por três figuras de honestidade comprovada, mais o Clarimundo de reboque para evitar a tentação dos comprovados, o Belisário arrancou para Punta del Este, onde chegou após três ataques e doze dias de viagem. Mal chegou teve outro e dos feios, que pôs em perigo não a sua vida, mas a vida dos acompanhantes. Seu Aristides chegou a chorar, enquanto o Belisário se esticava no chão. Seu Amaral, que sempre foi muito devoto, caiu de joelhos e começou a implorar:

- Não agora, Patrão Véio, não agora.

Na noite seguinte, o quinteto entrou no cassino. O Belisário examinou as mesas, escolheu uma e ficou quatro horas sem dizer palavra. Depois voltou para o quarto do hotel e passou o resto da noite fazendo cálculos. Terminou e teve outro ataque. Desta vez, seu Amaral já disse que era castigo e seu Aristides bateu com a cabeça na porta, dizendo que neste mundo não podia mesmo haver felicidade. Só seu Morais não falava, mas seu pomo de Adão mais parecia um pistão de automóvel. No terceiro dia, o Belisário jantou calmamente e anunciou que ia começar o roubo. Foi para a mesa e ganhou uma hora e meia, depois do que pediu para trocar as fichas e teve outro ataque. Não fosse o gerente do cassino reclamar teria ficado embaixo da mesa. Mas o gerente foi lá e exigiu que seu Aristides levasse o homem. Seu Aristides passou a ordem ao Clarimundo, que se negou alegando que tinha recebido a missão de fiscalizar o recebimento do dinheiro. Seu Aristides teve que ir lá e puxar o Belisário pelas pernas até a saleta. Quando o Belisário se refez os dois foram para o quarto, onde já encontraram os demais afundados num mar de argentinas e uruguaias. O Belisário teve outro ataque e acabou com a festa. No dia seguinte, por imposição do Clarimundo, o pessoal voltou para casa. Seu Aristides ainda teimava que podiam voltar ao Cassino, mas seu Amaral não conseguiu enfiar o Belisário dentro do salão de jogos. Tentou oito vezes, mas nas oito vezes, a segurança impediu:

- Enfermos, no.

Seu Morais fez um discurso contra a má vizinhança dos uruguaios, jurou que um dia ainda atravessaria a fronteira para conquistar aquela terra de injustiça, e depois limpou o pó dos sapatos. A Viagem de volta durou apenas seis dias, porque o Belisário não teve permissão para ter ataques fora do carro. A entrada e Vila Velha foi triunfal e quando seu Aristides largou o dinheiro em cima da mesma do coronel, o secretário da Prefeitura começou a cantar o Hino Nacional.

- Mil e duzentos contos, coronel.

Durante meia hora a sala trovejou, com os piores palavrões do mundo. Só o Belisário não abria a boca. Sorria com uma superioridade esmagadora. Só deixou de sorrir, quando o coronel lhe passou duzentos contos e disse que estava certo.

- Mas era a metade.

- Fora as despesas, meu filho. E tiveram oitocentos contos de despesa.

O Belisário olhou o coronel e não disse palavra. Mas uma hora depois, o Clarimundo entrou na sala esbaforido:

- O Belisário tá indo embora. Alugou o carro do Schutz, pôs a mãe dentro e se largou na estrada.

A cidade inteira saiu atrás dele, mas vinte quilômetros depois desabou um temporal que acabou com a perseguição. Um mês depois, o Belisário mandou uma carta de Buenos Aires perdoando todo mundo e oferecendo sua fórmula. Seu Aristides leu, levou a mão ao peito e caiu ao comprido. Todo cálculo do Belisário, era baseado na sua última descoberta: que nove vezes nove não era oitenta e um, mas oitenta e dois. Seu Morais até o fim da vida teve um tremor no lado direito da cara. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 99)

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