quarta-feira, 11 de março de 2020

O SORVETE

Por Sérgio Jockymann

Pois, três coisas mudaram a vida de Dom Tibúrcio. Primeira, ele foi sargento para São Paulo e voltou major. Segunda, enquanto ia, o tio e três primos morreram afogados no rio Uruguai e ele perdeu a estância. Terceira, mal voltou ganhou vinte e cinco contos da Sul América Capitalização. Assim, em três meses ele passou de seu Tibúrcio a major Tibúrcio e de major Tibúrcio a Dom Tibúrcio, o que lhe abriu as portas não apenas da Associação dos Pecuaristas, mas também do Clube Comercial, onde foi aceito depois que o coronel destacou sua principal qualidade.

- É viúvo e tá cheio de mulher empacada aqui dentro que merece uma oportunidade.

Dom Tibúrcio se portou à altura da nova situação. Deu para tomar banho diariamente, aparar o bigode uma vez por semana e cuspir apenas na escarradeira. Aliás, nisso era tão zeloso que uma vez atravessou o clube inteiro para depositar seu catarro no saguão. E isso que durante o percurso passou por três janelas sem uma só vez cair na tentação de tirar proveito delas. Até dona Candinha, que era muito refinada e já tinha ido duas vezes a Buenos Aires, achou que essa atitude punha Dom Tibúrcio definitivamente no rol dos homens civilizados. Mas por dentro, Dom Tibúrcio guardava uma mágoa imensa: nunca tinha comido sorvete. Todos os sábados quando o pessoal tomava cerveja no bar, sempre aparecia um despeitado para dizer:

- O que falta em Vila Velha é uma sorveteria.

E logo outro comentava.

- Em dia quente não tem nada como um bom sorvete.

E aí por mais que Dom Tibúrcio se fingisse de desinteressado, aparecia sempre um terceiro para perguntar:

- O senhor já provou sorvete?

E ele vexado tinha que admitir que não e sofrer calado o ar de superioridade dos demais. Um ano depois de sua entrada no clube, Dom Tibúrcio sugeriu ao Café Central que instalasse uma sorveteria, mas o proprietário abanou a cabeça.

- Com essa porcaria de luz não ia dar.

Dom Tibúrcio então começou a pressionar o coronel para melhorar a Usina Elétrica, mas a situação política estava meio delicada e a Intendência tinha medo de jogar dinheiro fora.

- Só tem verba pra fuzil, avisou o coronel.

O verão seguinte foi o pior dos últimos cinquenta anos e a fabriquinha de gelo do seu Fritz não dava conta dos pedidos. Até a cerveja andava choca e a água das moringas vinha morna e com gosto de barro. Consequentemente sorvete passou a ser o assunto preferido de todas as rodas e seu Antoninho teve a desfaçatez de dizer que ia a Santa Maria só para tomar sorvete. Para mal dos pecados, Dom Tibúrcio começou a arrastar a asa para a filha do major Otávio, que teve a indelicadeza de perguntar ao seu pretendente o que ele achava de sorvete. Dom Tibúrcio avermelhou até o dedão do pé e saiu da casa do major Otávio decidido a tirar aquela mancha do seu passado. No dia seguinte partiu para Porto Alegre a negócios. Só para o seu capataz teve a coragem de confessar:

- Só vou comer esse sorvetinho desgraçado.

E nem bem se instalou no Grande Hotel, caminhou decidido para a maior confeitaria, se aboletou numa mesa e pediu:

- Me dá um prato de sorvete.

O garçon disse que sorvete era servido em taça, mas Dom Tibúrcio não quis saber de conversa.

- Quero um prato. E um prato fundo.

O garçon perguntou de que qualidade e Dom Tibúrcio ficou irritado:

- Bota de tudo que não sou de andar escolhendo.

E antes que o garçon se afastasse quatro passos, ainda fez uma recomendação:

- E me traz uma colher grande.

Disseram depois que toda a confeitaria havia caído na gargalhada, mas isso não foi verdade. A verdade é que de repente caiu um silêncio de cemitério em dia de semana e só de olhar em volta, Dom Tibúrcio sentiu que estava impondo respeito. O prato fundo cheio de sorvete veio do balcão até a mesa, seguido pela admiração geral e só uma mocinha tossiu quando Dom Tibúrcio apanhou a colher. Assim mesmo foi repreendida pela mãe. Dom Tibúrcio empunhou a colher, cheirou disfarçadamente o sorvete, limpou a boca com as costas da mão e se lançou à aventura. Tirou uma colherada enorme de sorvete do prato e de um golpe enfiou tudo na boca. Por um momento, pareceu que lhe haviam dado com uma marreta nas costas. Ele entesou o corpo, arregalou os olhos e atirou a perna esquerda para frente. Mas aí deu com o olhar dos outros, retesou os músculos e engoliu. O garçon perguntou se ele estava bem e Dom Tibúrcio teve que tentar duas vezes abrir a boca, até conseguir falar:

- Tou acostumado com isso desde piá.

E com um ar de desafio limpou o prato com colheradas rápidas. Mal engoliu a última e a confeitaria inteira aplaudiu. Dom Tibúrcio sorrindo acenou para o pessoal, jogou a barbaridade de cinco réis em cima da mesa, levantou e saiu triunfalmente. Ficou três dias sem voz, com um lenço amarrado em volta da face, porque lhe doíam até os dentes que não tinha. Mas nem uma só vez pediu auxílio. Quando a voz voltou, retornou para Vila Velha e discorreu cinco horas sobre as delícias do sorvete. Mas para o seu capataz teve um desabafo:

Tu olha pro prato e não diz. Mas, vou te contar, é um negócio pra macho.

E em prato fundo, apesar de todo o progresso, continua sendo. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 104)

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