quarta-feira, 6 de outubro de 2021

MISTÉRIOS TEM A ARTE

MISTÉRIOS TEM A ARTE
Ruy Castro

As grandes frases e idéias podem ter tido uma encarnação anterior -ditas por outros escritores

Um dia, alguém diz ou escreve uma grande frase. Ela empolga os leitores, começa a ser citada e se incorpora ao seu autor. No futuro, descobre-se que já tinha sido dita muito, muito antes. E o que significa isso? Apenas que dois grandes escritores podem ter tido, com décadas entre eles, a mesma inspiração. Ferreira Gullar, por exemplo, disse certa vez, "A arte existe porque a vida não basta". Pois não é que descobri algo parecido num texto dos anos 30 do crítico Agrippino Grieco? "Se a vida bastasse, ninguém se daria ao trabalho de convertê-la em arte".

O suíço Erich von Däniken ficou rico com seus livros pseudocientíficos sobre supostos ETs nos primórdios da Terra. Um deles, sobre "antigos mistérios nunca resolvidos", saiu no Brasil em 1970 com o título "Os Profetas do Passado", e a expressão pegou. Mas acabo de encontrá-la, também nos anos 30 e pelo mesmo Agrippino. Ao lhe perguntarem sobre o futuro da literatura, ele respondeu: "Não gosto de fazer prognósticos. Prefiro ser um profeta do passado".

A península Ibérica se desgarra da Europa e, como uma ilha, navega à deriva pelo Atlântico. Onde você leu isto? No romance "A Jangada de Pedra" (1986), de José Saramago. Mas, nos anos 50, o sublime pensador Jayme Ovalle já tinha dito a seu entrevistador Vinicius de Moraes: "A ilha de Manhattan é um transatlântico atracado ao cais. De repente, levantará ferros e ganhará o mar".

E a simetria entre "Gita" (1974), de Raul Seixas e Paulo Coelho ("Eu sou a mosca da sopa/ E o dente do tubarão/ Eu sou os olhos do cego/ E a cegueira da visão// Eu sou o amargo da língua/ A mãe, o pai e o avô/ O filho que ainda não veio/ O início, o fim e o meio") e o poema "Eu" (1933), do pintor Ismael Nery: "Eu sou o profeta anônimo/ Eu sou os olhos dos cegos/ Eu sou o ouvido dos surdos/ Eu sou a língua dos mudos// Eu sou o profeta desconhecido/ Cego, surdo e mudo/ Quase como todo mundo".

Mistérios tem a arte.

Fonte: Folha de S. Paulo

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