sábado, 12 de março de 2022

A ÁGUA QUE VEM DO CÉU

A ÁGUA QUE VEM DO CÉU
Paulo Pestana

Em dezembro de 1957 pouco mais de 2.200 pessoas moravam na Cidade Livre, nome original do que hoje conhecemos como Núcleo Bandeirante. Era o centro comercial da capital que estava sendo construída, atendendo aos mais de sei mil moradores do Plano Piloto e outros três mil que ficavam nos acampamentos das construtoras.

A cidade tinha apenas um ano de idade, desde que Bernardo Sayão havia assentado pessoalmente o restaurante Pellechia, um hotel, dois mercados e um açougue. Já tinha outros hotéis, lojas, casas noturnas e até algumas indústrias pequenas, muitas oficinas mecânicas e até uma moagem de café.

Foi ali que, no dia 14 de dezembro, desabou o primeiro temporal que se tem notícia no que seria o Distrito Federal.

As construções eram todas precárias, porque aquela cidade nasceu para ser demolida assim que Brasília fosse inaugurada. Paredes e pisos de madeira, teto de zinco ou palha, puxados de lona, ruas de terra batida, conforto mínimo; parecia com as cidades do velho-oeste norte-americano que se via nos filmes – a diferença é que não eram permitidas armas.

Era uma época de muito trabalho para o incipiente Corpo de Bombeiros. Com tanto material de fácil combustão, fogões de lenha, tempo seco e vento forte, o fogo se alastrava com velocidade. E havia também a esperteza da população: cada sinistro era compensado com uma casa de alvenaria construída pelo governo no mesmo lugar do incêndio…

O livreiro Jorge Brito, alfarrabista das letras e cousas do DF, tem vários exemplares de jornais editados no local, desde o DC-Brasília até o Brasília em Foco, do cearense Lourival Pinto Bandeira. Mas eles só seriam publicados anos depois, a partir de setembro de 1959, antes disso só havia os apontamentos oficiais e o registro oral do que acontecia naquele núcleo improvisado.

Desta forma, só se sabe daquele primeiro pé-d’água por causa dos estragos que ele provocou, registrados pelas empresas construtoras em seus borderôs, acrescidas de relatos de testemunhas de quem viu o céu escurecer de repente e a água cair com violência, acompanhada de trovões, raios e rajadas de ventos. Não havia nem como se proteger.

A obra do castelo d’água da usina de Saia Velha, que estava sendo construída para fornecer energia para o Catetinho e aeroporto, além de áreas residenciais da Asa Sul, foi literalmente por água abaixo. A barragem do Ipê também não resistiu; foi parar no Riacho Fundo. Choveu em outros pontos do DF, mas com menos estragos.

No detalhado relatório da missão Cruls, de 1894, que explorou a região para determinar se havia condições de trazer a capital para o meio do país, não havia qualquer advertência sobre uma tempestade como aquela. Ao contrário, a comissão classificou como ameno o clima do planalto central, indicando temperaturas constantes, chamando a atenção para a leveza e pureza no ar.

Décadas se passaram, a cidade cresceu. Toneladas de concreto e asfalto foram aplicados em todos os cantos da capital. Mas os temporais continuam com a mesma força dos primeiros tempos, trazendo medo e o único consolo de encher as barragens.

Publicado no Correio Braziliense em 6 de março de 2022

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