segunda-feira, 12 de setembro de 2022

DIÁRIO DA NORUEGA RETRATA FIORDES, CRISE CLIMÁTICA E A MALDIÇÃO DO PETRÓLEO

Mario Sergio Conti

Quadros de Munch ainda completam as maravilhas do país, que é um bálsamo suave e silencioso para quem vem de São Paulo

10 de agosto. Com o aquecimento do planeta provocando incêndios no sul da Europa, o friozinho afável do verão norueguês é paradisíaco. Sem miséria nem opulência, Oslo é um bálsamo suave e silencioso para quem vem de São Paulo.

Dia 11. Não se vê dinheiro. O cartão de crédito libera a catraca do metrô e a entrada no cinema. Abre-alas dos menus, o salmão tem cor e gosto diferentes do que se come no Brasil. É de lamber os beiços.

Dia 12. De Munch, a maioria só conhece "O Grito", emblema da angústia moderna. O novo Museu Munch mostra um artista irredutível ao ícone. São centenas de telas que retratam figuras de uma solidão em carne viva. Não obstante, elas buscam algo —talvez uma vida menos áspera, sem dores em demasia.

Deu para ver uma exposição que se encerrou dias depois. Num salão do tamanho de uma quadra de futsal, com oito metros de altura e todo no breu, foram pendurados 20 dos quadros mais intensos de Munch. A luz incide somente neles, que parecem estar no meio do nada, fora do tempo.

A banda de black metal Satyricon, a mais conhecida da Noruega, compôs uma trilha sonora de 28 minutos. Tocada ininterruptamente, emendando o fim no começo, a música ecoa ou enfrenta as telas. Eletrônica e acústica, ela tem uma limpidez pulsante, se mescla com as imagens, vibra aqui e agora.

A exposição amplia a sensibilidade do espectador. Leva-o a abismos de ansiedade e beleza que, contudo, ele não poderá rever nem reouvir nunca: tem de fruir dela de imediato e guardar na memória o seu impacto. Fluida, plástica, a fusão de música e imagens foi feita para aquele salão, aquele museu, aquela tarde de agosto em Oslo.

Dia 13. O trem sobe as montanhas devagar e atinge um platô aonde não se chega de carro. Majestosas, as geleiras aparecem pela primeira vez. Ano a ano, o calorão do colapso climático lhes arranca um pedaço.
O trem chega a Bergen, onde a resistência à ocupação nazista foi encarniçada. No final da guerra, Quisling, o chefe dos colaboracionistas, foi executado por deslealdade à pátria.

Em vários países, a palavra "quisling" foi adotada e virou sinônimo de traidor —não no Brasil, onde as barbaridades, de tão corriqueiras, são sempre aceitáveis.

Dia 14. Geiranger fica no coração dos acidentes geográficos cuja palavra norueguesa que os denomina é a única conhecida fora do país: fiordes. Eles parecem braços de mar que entram no continente.

Mas é o contrário. Produto do afundamento de glaciares em tempos imemoriais, que abriram crateras colossais no solo, fiordes são imensidões de água oriundas do mar rodeadas por paredões de pedra de centenas de metros de altura.

Dia 15. O vento tênue toca de leve a água azul-piscina dos fiordes. Reduzida a elementos essenciais, a natureza molda uma paisagem pura, imóvel desde o tempo em que não existia a sociedade dos seres humanos.

Dia 16. Ao redor de Geiranger, as estradas são estreitas e o asfalto é um tapete negro. Os motoristas mantêm a velocidade baixa mesmo na ausência de radares e raramente ultrapassam uns aos outros.
A transição das cidades para as zonas rurais se dá aos poucos, suavemente, sem periferias. As pessoas falam baixo, são discretas, têm gestos comedidos. Não há barracos, arranha-céus, condomínios.

Dia 17. O culto da igualdade começou com a peste negra de 1398, que dizimou 60% da população. Com a mortandade, os nobres tiveram que capinar a terra e viver como os camponeses que um ano antes exploravam. A nação se depauperou e levou séculos para sair da draga. Mas a igualdade virou um valor maior.

Dia 18. Em Kristiansund, não se nota que a Noruega foi um dos países mais pobres da Europa até o fim da Segunda Guerra. O Plano Marshall deu impulso decisivo à economia; e a descoberta de petróleo, em 1969, coroou a transformação. Os governos, pressionados por sindicatos e cooperativas, zelaram para que a Noruega não sucumbisse à maldição do petróleo, que vitimou Arábia Saudita e Angola: a captura da renda nacional por uma elite corruptora.

As divisas geradas pelo petróleo foram alocadas num fundo soberano, que as investiu na infraestrutura, na educação e no sistema de saúde. Agora, para que o planeta não aqueça ainda mais, e a crise climática não vire hecatombe, a Noruega cogita cortes na produção de petróleo.

Dia 19. Enquanto o apocalipse não vem, percorro de barco o fiorde Nærøy, de cujas margens, que tocam as nuvens muitos metros acima, se precipitam cataratas de água cristalina e prateada.

Fonte: Folha de S. Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário