terça-feira, 15 de agosto de 2023

OS LIVROS QUE SALVARAM A MINHA VIDA

Mirian Goldenberg
Como tantas crianças traumatizadas pela violência familiar, livros foram meu único refúgio de amor e esperança

Sou, como tantas crianças nascidas em famílias violentas e abusivas, uma sobrevivente. Da infância, só me lembro de cenas de brigas, gritos e surras. Eu me escondia dentro dos armários, tentando ser invisível para não apanhar de meu pai e irmãos.

Minha salvação foram os livros do meu pai. Ainda menina, li todos os livros que encontrei na estante da sala: Freud, Erich Fromm, Karen Horney, Melanie Klein, Sartre, biografias, histórias do Holocausto e muitos outros. Não tive Barbies: os livros foram meus únicos brinquedos.

Não sei quantos livros eu li até hoje, talvez alguns milhares. Gosto de brincar com os meus livros: escrever comentários e perguntas para os autores, sublinhar as frases com canetas coloridas, registrar as ideias mais importantes em post its de diferentes tamanhos e cores. Meus livros parecem verdadeiros arco-íris, com post its e anotações com canetas azuis, pretas, vermelhas, amarelas, rosas, verdes, roxas...

Na semana passada, uma jornalista me perguntou quais foram os livros e escritores que mais influenciaram minhas escolhas existenciais. Não tive a menor dificuldade para escolher minhas três musas inspiradoras.

'O Segundo Sexo'

Aos 16 anos, li "O Segundo Sexo", de Simone de Beauvoir. Já li tantas vezes o livro que precisei comprar outro, de tão colorido e sublinhado ele estava. É o livro mais importante da minha vida. Imaginem a minha alegria ao receber o convite, em 2019, para escrever a apresentação da edição comemorativa de 70 anos de "O Segundo Sexo". E de ver o meu texto ilustrado com a fotografia de Simone de Beauvoir, nua, no espelho: um belo retrato da liberdade feminina.

Descobri os caminhos da minha libertação com a leitura de "O Segundo Sexo". Simone de Beauvoir me ensinou que eu não estava condenada ao mesmo destino infeliz da minha mãe: ter um marido agressor, alcoólatra e espancador dos filhos. Ela me inspirou a lutar incansavelmente, como luto até hoje, para ser uma mulher independente financeiramente e realizada profissionalmente. Afinal, "não se nasce mulher: torna-se mulher"!

'Em busca de sentido'

A coluna de Gilberto Dimenstein, "Melhor viver do que morrer com câncer", na Folha de 19/7/2009, mostrou a experiência de uma terapia em hospitais de Nova York baseada no livro "Em Busca de Sentido", de Viktor Frankl. No mesmo dia comprei o livro que se tornou minha âncora de salvação.

Frankl, um psiquiatra que sobreviveu aos horrores dos campos de extermínio nazistas, me ensinou que, mesmo nas circunstâncias mais trágicas, ainda tenho a liberdade de escolher a atitude que posso ter frente ao sofrimento inevitável. Além de me ajudar a encontrar o propósito da minha vida, ele me mostrou que o humor é uma arma poderosa na luta por nossa sobrevivência física e emocional.

Nos primeiros dias da pandemia, quando estava afundada no desespero, pânico e depressão, li pela enésima vez "Em Busca de Sentido" e tomei uma decisão que mudou minha atitude: guardei a minha dor em minúsculos pedacinhos de papel, como Frankl fazia, e passei a cuidar da dor das pessoas que eu mais amo. Desde o dia 15/3/2020, o momento mais feliz do meu dia é quando estou escutando, conversando, lendo, cantando, brincando e rindo com meus amigos nonagenários.

'Ostra Feliz Não Faz Pérola'

Chorei muito quando li a crônica "Despedida", de Rubem Alves, na Folha de 1º/11/2011. Aos 78 anos, ele escreveu:

"Perco o sono atormentado por deveres, pensando no que tenho de escrever. Sinto — pode ser que não seja assim, mas é assim que eu sinto — que já disse tudo. Não tenho novidades a escrever... E é por isso que vou parar de escrever: porque estou velho, porque estou cansado, porque minha alma anda pelos caminhos do Robert Frost, porque quero me livrar dos malditos deveres que me dão ordens desde que me conheço por gente..."

Eu, que já escrevia na Folha desde 1º/7/2010, quase telefonei para o meu cronista favorito, mas não tive coragem de pedir: "Por favor, não pare de escrever. Você é meu mestre na 'arte de escutar bonito'. Vou te contar um segredo: todos os dias eu releio 'Ostra Feliz Não Faz Pérola'. Tenho a esperança de que, algum dia, antes da minha despedida, vou aprender a transformar a minha tristeza em beleza".

Fonte: Folha de S.Paulo

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