quarta-feira, 24 de agosto de 2022

A HISTÓRIA SEM REGISTRO

Ruy Castro

Para saber como certos momentos da música popular aconteceram, temos de fechar os olhos e sonhar

"Get Back", a série de Peter Jackson sobre a última vez que os Beatles se juntaram para trabalhar, é o sucesso do momento. A única pessoa de minhas relações que ainda não o viu sou eu --não por falta de interesse, mas de tempo. Além disso, como ele está no streaming, imagino que esperará até que eu me libere do serviço. Pelo que sei, é uma maravilha de quase nove horas de duração, envolvendo a gravação dos álbuns "Abbey Road" e "Let It Be" e o concerto no famoso terraço em Londres. Na época, janeiro de 1969, os jornais e revistas só falavam disso. Ninguém imaginava que, 52 anos depois, aqueles sons e imagens chegariam até nós.

Ótimo para a história da música popular e para as novas gerações, que estão tendo acesso às intimidades de um formidável grupo do passado. Só lamento que, num passado ainda mais remoto, nem os americanos tivessem condições de fazer o mesmo com artistas tão essenciais em seu tempo quanto os Beatles nos anos 60.

Pelos copiosos áudios de que dispomos e, no máximo, algumas fotografias, só podemos imaginar Louis Armstrong em 1927, pouco depois de trocar o cornet pelo trompete, gravando "Potato Head Blues" com Johnny Dodds à clarineta e Kid Ory ao trombone. Ou Duke Ellington e sua orquestra no Cotton Club, em 1930, já com os metais em surdina fazendo wa-wa e o glorioso Johnny Hodges ao sax-alto. E não seria extasiante ver Billie Holiday, aos 20 aninhos, em 1935, cantando "If You Were Mine", com Teddy Wilson ao piano?

Alguém terá filmado o concerto de Benny Goodman no Carnegie Hall em 1938, a primeira vez que se ouviu jazz num espaço "nobre"? E haverá pelo menos um caco de filme com Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Thelonious Monk inventando o bebop nas madrugadas da rua 52, em Nova York, em 1942?

Não. Nada disso existe. Eles ainda não eram importantes. Só nos resta ouvir os discos, fechar os olhos e dar curso à nossa capacidade de sonhar.

Fonte: Folha de S. Paulo - 1º.jan.2022

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