domingo, 20 de novembro de 2022

O FILÓSOFO EXCÊNTRICO QUE INSPIROU O ABOLICIONISMO

Leandro Narloch

Professor de filosofia moral sugeriu no século 18 um arranjo social revolucionário

Um dilema que acompanhou a humanidade foi como dividir tarefas –definir quem fará o quê. Como designar obrigações aos outros, determinar os que vão caçar, buscarão lenha para o fogo, coletarão frutos ou se especializarão na composição química de ligas metálicas de sondas espaciais?

Em diversas sociedades da história, essa pergunta foi respondida pela força. Faraós ordenavam a construção das pirâmides, imperadores romanos importavam escravos para construírem o Coliseu, senhores da América obrigavam seus escravos africanos a trabalhar em lavouras e comércios.

Outra forma de atribuir tarefas foi a tradição da estratificação social. Na Índia, no Sri Lanka, no Oeste da África e muitos outros lugares as pessoas se dividiam em castas. Dependendo da família em que nasceu, o indivíduo ganhava um estigma que determinava direitos e oportunidades de toda a vida.

Em 1776, um professor de filosofia moral da Universidade de Glasgow sugeriu um novo arranjo social. Era um típico filósofo excêntrico e distraído, que saía de casa gesticulando e falando sozinho sem saber para onde ir. Certa vez caminhou por 15 quilômetros até perceber que tinha esquecido de se trocar e vestia a camisola que se usava como pijama.

A sugestão dele parece óbvia hoje, mas na época foi considerada revolucionária e subversiva. Consistia simplesmente em "deixem cada um fazer o que quiser. Parem de se intrometer na vida dos outros, obrigá-los a isso ou proibi-los daquilo".

Ou, nas palavras dele, "deixa-se a cada qual, enquanto não violar as leis da Justiça, perfeita liberdade de ir em busca de seu próprio interesse, a seu próprio modo, e faça com que tanto seu trabalho como seu capital concorram com os de qualquer outra pessoa ou categoria de pessoas".

O nome daquele professor de filosofia era Adam Smith e a sugestão dele criou a economia moderna.

Ele acreditava que pessoas livres, interessadas em melhorar de vida e conquistar a simpatia dos outros para futuras relações de cooperação, acabavam sem querer resolvendo problemas uma das outras.

Esse "sistema óbvio e simples de liberdade natural" desafiava a fortíssima instituição da escravidão da época. Se o argumento moral em defesa da abolição já circulava no século 18, Adam Smith adicionou uma justificativa econômica. Acreditava que o "trabalho executado por escravos, embora aparentemente custe apenas a própria manutenção deles, no final é o mais caro de todos".

Impedidos de perseguir o próprio interesse, os escravos não se preocupariam em inovar ou lucrar servindo os outros. Para compensar a opressão, se interessariam apenas em "comer o máximo e trabalhar o mínimo possível".

"O patrimônio de um homem pobre repousa sobre a força e destreza de suas mãos; e impedi-lo de empregar sua força e sua destreza da maneira que julga adequada, sem prejudicar seu vizinho, é uma plena violação de sua mais sagrada propriedade", escreveu ele em "A Riqueza das Nações".

Ninguém sensato, nem o próprio Smith, acreditava na época que algum dia a escravidão e a servidão terminariam. Elas predominavam em quase todos os continentes; um escritor estimou em 1772 que havia no mundo 775 milhões de habitantes, dos quais apenas 33 milhões seriam livres. E as colônias inglesas no Caribe davam lucros altíssimos com o cultivo de açúcar feito por escravos.

Para Adam Smith, as fazendas eram tão rentáveis que os proprietários podiam se dar ao luxo de queimar parte do lucro para exercer o velho costume humano de dominar os outros. Insistiu que o fim da escravidão beneficiaria não só escravos, mas senhores e toda a sociedade.

"A dupla tese de Smith se tornou peça central da crença abolicionista, dirigindo e prevendo o triunfo final do trabalho livre", escreveu o historiador Seymour Drescher, um dos principais especialistas na história do abolicionismo, no livro The Mighty Experiment. "Nenhuma formulação subsequente provou ser tão direta ou convincente para os defensores da abolição durante gerações de luta política contra o tráfico atlântico de escravos e a escravidão caribenha."

Apesar de seu enorme legado para o abolicionismo, aquele professor de filosofia moral é hoje desprezado pela maioria dos ativistas e historiadores. Muitos acreditam que ele foi apenas um defensor da ganância, do capitalismo e das grandes empresas.

Caros leitores, a partir desta semana vou interromper as contribuições para a Folha, pois preciso me concentrar no meu próximo livro. (O texto acima, aliás, já é um aperitivo dele.) Agradeço aos leitores pelas críticas e elogios e ao jornal pela liberdade de pensamento de que sempre desfrutei por aqui.

Fonte: Folha de S.Paulo

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