domingo, 13 de novembro de 2022

O AR ESTÁ MAIS LEVE, MAS É BOM NÃO ESQUECER QUE O ÓDIO NEONAZISTA SE ESPALHA

Jorge Coli

Filme retrata efeitos da contaminação do vírus mental do extremismo em pessoas aparentemente comuns

O ar parece mais leve e, pouco importa que tempo faça, tudo está mais luminoso. O sorriso que não quer ir embora, nem quando esbarro em algum bolsonarista rabugento. Meu casal de cachorros olha para mim: os dois estão felizes, decerto porque me veem alegre.

Tranquilo, divirto-me seguindo a vexaminosa dança de acasalamento em torno do presidente eleito, feita pelos inimigos de outrora, a começar pelos pastores Malafaia e Edir Macedo, e executada por Arthur Lira com pirueta de verdadeira estrela do balé.

Tudo em paz, portanto.

Até que um amigo me convidou para ver o filme "Soft & Quiet" (suave e tranquilo). Já o classifiquei nos primeiros lugares dos meus melhores, mais perfeitos, mais intensos filmes da história.

Não tinha ouvido falar de sua diretora, Beth de Araújo. É americano-brasileira, nascida e criada em San Francisco. Sua mãe tem origem chinesa, e seu pai é brasileiro. Faz questão de mencionar, na biografia do seu site, que possui dupla cidadania, do Brasil e dos Estados Unidos.

Nunca havia realizado um longa-metragem antes. Escolheu parâmetros nada fáceis: o filme é feito em um único plano-sequência e, em decorrência, tudo se passa em tempo real.

Desde "Festim Diabólico" (1948), de Hitchcock, alguns filmes, não muitos, foram realizados segundo o princípio do "single shot", e vários têm bela qualidade. Mas nenhum atingira a altura de "Festim Diabólico". "Soft & Quiet" surge agora como outra perfeita obra-prima.

A comparação com Hitchcock e a qualificação pomposa de "perfeita obra-prima" são enganadoras, porém. A intensidade humana, violenta, atingindo a histeria, de "Soft & Quiet" nada tem da frieza expositiva de "Festim Diabólico".

Beth de Araújo filmou em quatro dias seguidos, cada dia do começo ao fim, na ordem da narração. Escolheu sobretudo o material do quarto dia, quando os atores habitavam plenamente os personagens e dominavam as situações.

Isso permitiu uma convergência entre cinema e teatro como é muito difícil obter. Sem cortes ou rupturas, a verdade das interpretações é crucial e dela depende a adesão do espectador. Mas o domínio da direção cinematográfica aumenta muito o poder da direção de atores.

É difícil escrever sobre o filme tendo que preservar o leitor de spoilers. Porque as descobertas sucessivas, muito paulatinas, são essenciais para o envolvimento quase hipnótico de quem assiste.

A história se passa em uma pequena cidade do norte da Califórnia. Em uma cabina de banheiro público, uma mulher verifica um teste de gravidez e chora. Momento íntimo, frágil. Ela sai e vê, na frente de uma escola, um menino que aguarda sua mãe atrasada. Ela é professora e faz companhia ao garoto, amiga e afetuosa. Mas algumas observações suas, estranhas, sobre uma faxineira negra parecem enxertar algo de incompreensível e de perturbador.

Emily, a professora, organiza um clubinho de mulheres neonazistas, cujo sinal de reconhecimento é o do "white power", o mesmo feito por aquele assessor de Bolsonaro durante uma sessão do Senado que a Polícia Legislativa concluiu como criminoso. Esse pequeno grupo também se diverte levantando o braço, no gesto que corresponde ao da saudação nazista.

São boa gente. Têm filhos. Uma está grávida. Mas não aguentam mais a invasão dos estrangeiros que, por causa da cultura woke, progridem mais facilmente nas carreiras do que elas, embora esses estrangeiros, negros, latinos, judeus, sejam menos inteligentes, menos higiênicos, muito barulhentos e bagunceiros. Então, combinam ações e estratégias futuras para defender a supremacia branca.

Até que acontece um confronto, e se desencadeia o inferno.

Diversamente dos filmes de terror em que há um assassino psicopata e que provocam um medo saído dos abismos maiores de nossos inconscientes, "Soft & Quiet" é a exposição de horrores bem objetivos. Horrores que existem em nossos dias pelo mundo afora e muito no Brasil dos últimos quatro anos.

Nossa angústia apavorada ao assistir ao filme (o produtor falou em "desconforto", o que é uma palavra muito fraca diante do que vemos) surge porque seguimos a infiltração íntima de uma fé nazista no âmago das pessoas e seus efeitos. Pessoas que convivem conosco, ao nosso lado, aparentemente comuns, mas que estão contaminadas por um vírus mental feito de fé e de desrazão.

Neonazismo não é um exagero de esquerdista nem um fenômeno menor. Radicalizações extremistas ocorrem em todo o planeta.

Não muito longe de minha casa: alunos do colégio Porto Seguro, em Valinhos, colégio caro, que foram expulsos, chamam-se a si mesmos de "neonazistas do Porto" — que educação tiveram esses jovens nas famílias e nessa escola? E, pior, pipocam grupo neonazistas em várias outras escolas —particulares— por todo o Brasil. Suas manifestações enchem-se de expressões racistas.

A intolerância emana até mesmo de professores: no Amapá, uma docente de universidade não aceita orientandos de esquerda! Essas pessoas tomadas por ódio extremista estão disseminadas, no Brasil inteiro, no mundo inteiro. Acham-se perto de cada um.

A Folha deu a notícia, com a foto, de uma adolescente de 12 anos, negra, linda, sorridente e feliz, que comemorava o resultado das eleições em Belo Horizonte. Seu nome: Luana Rafaela Oliveira Barcelos. Foi baleada e morreu. Com ela, morreu também Pedro Henrique Dias Soares. Mais pessoas foram baleadas.

A declaração do autor dos disparos, que foi preso, Ruan Nilton da Luz, é expressiva: "Em depoimento à polícia, ele disse que passou o dia da eleição bebendo e, em dado momento, ficou desorientado, pegou armas e saiu caminhando pelo bairro, disparando contra pessoas que comemoravam a vitória do petista". Perfeito exemplo de fé política irracional que se manifesta pelo crime.

"Soft & Quiet" faz sentir, faz intuir, com uma autoridade da qual não se escapa, os movimentos internos dessas convicções que embriagam mais do que qualquer cachaça ou cerveja.

O ar continua leve, e não consigo perder a alegria de nos vermos livres daquele pesadelo que durou seis anos, mas é bom não esquecer que a peste do neonazismo, insidiosa ou brutal, anda se infiltrando por todos os lados.

Fonte: Folha de S. Paulo

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