quarta-feira, 23 de novembro de 2022

PERDEU, MANÉ

Eduardo Affonso (*)

Preocupado com a saúde mental do país, O GLOBO levou o Brasil a quatro renomados psicanalistas. Os diagnósticos estão lá, na página 29 da edição de domingo passado (13 de novembro): psicose, luto, autossabotagem, idealização, desilusão.

O Brasil ouviu, elaborou, racionalizou, introjetou, fechou uma gestalt, teve um insight e resolveu ouvir uma quinta opinião. Procurou Pai Dudu da Gamboa, que incorpora Freud, Jung, Reich e Lacan em seu terreiro – e volta e meia faz previsões imprevisíveis aqui, nesta coluna.

Acomodado no divã depois de um rápido banho de descarrego (não por falta do que descarregar, mas premido pelo tempo lógico), o Brasil desandou a falar de seu maior complexo: a irrefreável vocação para matar o pai, Portugal (começando pela língua) e se amasiar com a mãe África (uma relação ambígua de orgulho e preconceito). E, claro, do trauma recente:

– Tenho medo do desamparo, de passar o resto da vida como um sem-teto.

– Sem teto de gastos… – interpreta Freud.

– Sim. Foram quatro anos ao relento, e tudo indica que os próximos quatro também serão a céu aberto.

Reich sugere que o Brasil se solte mais, deixe de lado essa obsessão com censura e controle da mídia, invista no desbloqueio das armaduras psíquicas e das estradas.

– É que eu estou numa fase de transição. Não de gênero, mas de um mito para outro.

Jung lembra que foi para o Brasil que ele desenvolveu, postumamente, o conceito de “inconsequente coletivo”. Algo que se manifesta nas camadas mais epidérmicas da psique – quando milhões de pessoas se enrolam na bandeira para pedir que uma ditadura venha salvar a democracia. Ou outras tantas concordam em dar um cheque em branco a um notório perdulário para que ele as proteja da bancarrota.

– Impulsos sadomasoquistas – pontifica Freud. Vamos fazer associações livres…

– Ok. Faz o L, alea jacta est, jactância, Lava-Jato, Vaza-Jato, compra de jatos suecos, jato da FAB com cocaína, jet ski, viagem em jatinho de empresário condenado…

Freud faz anotações. Lacan faz um trocadilho. Darwin baixa, do nada, sente o clima e avisa que volta quando a situação tiver evoluído.

– Tenho tido pesadelos, doutor: eu sou um navio, e vem um iceberg desgovernado na minha direção. Ou uma Ponte Rio-Niterói, não sei bem. Os filhos do capitão brincam com o leme, achando que aquilo é um manete de videogame.

– Esse pesadelo vai acabar, já já…

– Sei que vai, mas já comecei a ter outro: agora eu sou um avião, e a mulher do piloto quer um lugar na cabine de comando. Sem contar que vivo me debatendo em falsos dilemas. Dividir o bolo ou esperar o bolo crescer? Economia ou saúde? Responsabilidade fiscal ou social?

– Você precisa fortalecer seu Ego liberal, equilibrando as demandas do Id de esquerda e as imposições do Superego de direita.

– É que metade de mim está em negação, se recusando a aceitar a mudança. A outra metade quer mudar, mas para voltar a ser o que já foi. Doutores, será que eu perdi o rumo, o bonde, o juízo?

Reich e Jung se entreolham, desolados. Lacan murmura algo incompreensível. Freud explica:

– Perdeu, mané.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Fonte: brasildelonge.com

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