quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

O CALO

Imagem: Internet
O CALO 
Por Sérgio Jockymann 

Pois, a maioria dos calos não tem nada de extraordinário e só costuma doer quando está para chover. Assim mesmo é preciso que sejam calos de alta estimação, porque calinhos novos, ainda sem experiência na vida, nem como barômetro servem. Mas todos os calos reunidos do mundo, com todas suas qualidades reunidas, não faziam metade do calo do major Ariovaldo. Ah, sim, aquilo que era calo! Começa que era um caroço até meio lindo, plantado assim do lado do pé, como quisesse virar dedo numa hora dessas. Não tinha nada de casca, olho e outras coisas desagradáveis. Era o que se pode chamar de um calo limpo. O pé vinha muito direitinho, chegava ali encaroçava, formava o calo e depois tornava a criar juízo. O major Ariovaldo conseguiu o calo em 1922 quando, sem aviso, sentiu uma pontada no pé, tirou a bota e deu com ele. Três dias depois, explodiu uma revolução e como Vila Velha não pagava licença para entrar em bagunça, quase que o major foi fuzilado por engano. Saiu dali, chamou a mulher e disse com a mais absoluta convicção: 

- O calo me avisou e eu não escutei.

Dona Teresa era uma alma incrédula, teve um sorriso de superioridade e pela milésima vez repetiu que o maior engano de sua vida, tinha sido casar com um major honorário sem ambição na vida. E pela milésima vez o major Ariovaldo jurou que se não fossem os três filhos, saía de casa e jamais a mulher ouviria falar dele.

- E quanto ao calo, quem viver, verá.

E quem viveu viu, porque um belo dia em 1923, numa tarde linda, cheia de sol, o major Ariovaldo mancou em plena praça, descalçou a bota e lá estava ele.

- O calo ta me doendo.

O major não pensou duas vezes. Pegou os filhos e cruzou o Rio Uruguai. Foi aquietar o calo na Argentina. E fez muito bem, porque três dias depois, era bala e bala em Vila Velha, porque havia estourado outra revolução. Como desta vez havia muita gente boa para testemunhar o aviso, o calo pegou fama.

- É um calo cívico!

Mas, todo mundo sabe que o mundo se divide em pequenos, que acreditam em tudo, e em grandes que não acreditam em nada. Donde, nas altas esferas, os avisos do calo não tiveram a menor repercussão. Mas em 25, o major Ariovaldo tirou a bota e se largou para a Argentina e três dias depois, correu bala que dava gosto. Nesta altura, o major voltou para casa e avisou a família:

- Esse calo é um patrimônio.

Dona Teresa cuspiu de nojo. Mas, nem um ano depois e o major Ariovaldo saltou da cama numa noite e começou a fazer as malas. E quando dona Tereza perguntou o que havia, ele só resmungou:

- O calo.

Dona Tereza como sempre se recusou a ouvir a voz do calo e ficou na cidade, que três dias depois era uma barulheira só, com a tropa do coronel Eustáquio de um lado e a tropa do coronel Salatiel do outro. Foi a primeira vez que o calo provou que além de consciência nacional, tinha também consciência municipal. E quando voltou da Argentina, teve gente que foi receber o calo na entrada da cidade. O major Ariovaldo teve que tirar a bota e exibir o calo para todos os crentes.

- Infalível, meus filhos.

Ora, em vinte e sete, quando o major Ariovaldo em pleno Café Central gemeu e descalçou a bota, foi uma correria. Naquela tarde, para desprezo de Dona Tereza, o major Ariovaldo quando saiu levou um terço da cidade com ele. Por isso três dias depois, quando o coronel quis recrutar um batalhão encontrou uma certa dificuldade. E para todo mundo que o coronel perguntava o que tinha havido, a resposta era a mesma:

- O calo avisou tresontonte.

O coronel resolveu investigar o caso pessoalmente, coisa que fez uma semana depois, quando o major Ariovaldo regressou da Argentina.

- Que negócio é esse do calo, major?

O major Ariovaldo tirou a bota, arrancou a meia e exibiu o calo já com um certo orgulho.

- Taí ele, coronel. É um diabinho de esperto. Três dias antes, ele já dá o aviso.

- Três dias antes de que, major?

- De fervo, coronel. De tudo que é tipo de fervo. Fervo municipal, fervo estadual e fervo nacional. E le digo mais, que quando há uma bagunça lá na zona, ele não dói, mas fica meio dormente.

Então, chegou 1930 e com 1930 chegaram alguns boatos meio feios. E à medida que o ano avançava, o major Ariovaldo se tornava a pessoa mais disputada na cidade. Todo o santo dia eram dez ou doze perguntando:

- Doeu?

E ele, muito sério, balançava a cabeça.

- Ainda não, mas ta comichando.

E ao som de comichar, todo mundo começou a fazer as malas e o coronel, quando deu pela coisa, estava tendo uma certa dificuldade em mobilizar os homens que Getúlio pedia.

- Vai ver que o inimigo tá dentro de casa.

Mas no dia seguinte, alguém falou no major Ariovaldo e o coronel pulou de raiva:

- Me chama o major!

Chamaram o major Ariovaldo que veio com muita importância e se abanquetou na frente do coronel.

- Se é informação, coronel, le digo que só tá na comichão.

O coronel esmurrou a mesa.

- Major, esse calo ta querendo pegar um jeito de traidor.

O major ficou ofendido.

- Se o pé é patriota, coronel, como é que o calo não vai ser! Nem diga uma coisa dessas que me ofende.

O problema é que tem gente fazendo as malas.

- Pois não é aconselhável nas horas de fervo, coronel?

O coronel bufou.

- Aconselhável é homem de Deus. O que não é, é recomendável. Tou aí com um pedido do Getúlio pra mobilizar três mil homens e não consigo mais que mil.

- Mas o que é que eu posso fazer, coronel?

- Esse calo tá proibido de doer. Doeu, o senhor tá preso. E também não me saia da cidade.

O major Ariovaldo olhou o coronel de alto a baixo durante uns cinco minutos, pegou o chapéu e saiu muito ofendido. E nos dias seguintes se trancou em casa. Não recebia ninguém. Ficou assim duas semanas, até que foi falar novamente com o coronel.

- Coronel, eu por mim não falo. Mas quando ele dói, nem posso caminhar. Sabe como é o povo. O dia que o pessoal me ver capenguendo pela cidade a desgraça tá feita e ainda vou preso injustamente.

O coronel pensou e concordou que era a mais pura verdade.

- Garanto até, major, que tem gente bombeando esse pé dia e noite.

- Pois le digo que tem.

- E o que se pode fazer, major?

O major rodou o palheiro na mão, olhou o coronel, abanou a cabeça e deu a idéia.

- Acho que o bom era eu me afastar da cidade por um tempo, coronel.

O coronel não gostou da idéia.

- Não tá me agradando, major. Tem certeza que o calo não tá doendo?

- Mas que nada, coronel. Olha lá.

E pulou no pé direito. O coronel só ficou meio convencido.

- Major, quem sabe o senhor me deixava alguém da família de garantia?

- Pois muito bem lembrado. Le deixo a minha mulher, a Tereza.

- Tá feito.

E foi assim que no dia seguinte, em companhia dos três filhos e às altas horas da madrugada, o major Ariovaldo saiu de fininho para a Argentina. E antes de atravessar o Uruguai mandou um mensageiro ao coronel, com uma novidade.

- Diga pro coronel, que se apronte porque o calo começou a doer onte.

O coronel ficou danado da vida e queria fuzilar dona Tereza, mas aí chegou o terceiro dia e no meio de tanta bala, não havia tempo para um varejo desses. Seis meses depois, o major Ariovaldo voltou da Argentina e teve a desfaçatez de bater na casa do coronel:

- Coronel, me desculpe, mas o senhor me decepcionou. Pensei que fosse um home de palavra. Esperei seis mês pela notícia do fuzilamento da Tereza, chego hoje e tá lá ela viva. Vou le dizer, que hoje não se pode mais confiar em ninguém. Só nos calo.

E por puro desfastio se mudou de vez para a Argentina, onde dizem que o calo não doeu nunca mais. O que prova que era mesmo um calo patriota só preocupado com os problemas brasileiros. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 63)

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