quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

O ASSOALHO

Por Sérgio Jockymann

Pois, quando dona Zefa descobriu que o marido não valia um tostão furado, e isso já no terceiro mês de casada, transferiu todo o seu amor para o assoalho. Prendeu as saias na cintura e se largou de escova e sabão para cima do assoalho, como se aquilo fosse lua-de-mel, bodas de ouro e primeira fotografia com os netos. Levou bem três dias nessa limpeza furiosa e nem bem terminou, barrou o marido na porta de entrada:

- De sapato não entra.

Seu Genival que nunca brigou por nada, tirou os sapatos e dali por diante pegou o hábito como se fosse vício de nascença. No dia seguinte, foi muito obediente comprar latas de cera, que dona Zefa esvaziou no assoalho. Quando deu o trabalho por terminado, a casa toda era um espelho. Logo em seguida, fabricou uns chinelões de feltro e colocou ao lado da porta. Visita que chegasse, tinha que descalçar os sapatos, enfiar os chinelões e sair pela casa arrastando os pés. Não era muito cômodo, mas dona Zefa dizia:

- Não suja e ajuda a polir.

Nos domingos, seu Genival andava de chinelões de feltro por todas as peças da casa, coisa que na primeira vez fez meio arrenegado, mas que depois passou a fazer com um zelo impressionante. Inclusive era de voltar atrás, se abaixar e catar no chão uma poeirinha de nada. Os vizinhos diziam que se dona Zefa tivesse filhos aquela mania teria terminado, mas como seu Genival tinha nascido sem um certo ingrediente a mania continuou. E continuou até nos piores momentos da vida. Quando, por exemplo, o apêndice do seu Genival explodiu no meio da noite, o dr. Wurtemberg teve que tirar as botinas de elástico e enfiar os chinelões, apesar dos berros do paciente.

- Dona Zefa, o homem está sofrendo.

- Sofrimento nunca matou ninguém, doutor. Calce o chinelão.

E lá se foi o dr. Wurtemberg para o quarto arrastando os chinelões de feltro. E quando quis operar no quarto mesmo, dona Zefa riu na cara dele.

- Operar e sujar o chão? Não, senhor. Leve esse traste daqui e abra a barriga dele no hospital.

Pelo que dois enfermeiros entraram de chinelão de feltro e carregaram seu Genival numa padiola para o hospital. E nem bem tinham saído, já dona Zefa corria de pano de feltro pelo assoalho, resmungando contra a falta de cuidado do pessoal. Seu Genival escapou do apêndice rebentado, mas não escapou de uma carraspana quando quis descer da cama com os pés descalços.

- Sem meias tu não me pisa nesse chão. Pele tem graxa e mancha.

Em trinta, quando Vila Velha foi atacada e o coronel decidiu que a casa do Genival era um bom posto de observação, o dr. Aristides, promovido a major do Provisório, abriu a porta e já estava sentando a bota no chão, quando se viu de frente com uma espingarda de dois canos.

O dr. Aristides fez um discurso sobre os ideais políticos, mas dona Zefa não se deixou comover.

- Derrube a casa, mas não suje o assoalho.

E foi assim que o dr. Aristides dirigiu o fogo legalista durante três horas, metido em chinelões de feltro. E cada vez que a cinza do cigarro ameaçava a cair, ele tinha que espichar o braço pela janela, porque dona Zefa estava atrás dele de espingarda na mão. Quando o combate terminou, o dr. Aristides declarou para o coronel que nunca pensou que sua vida valesse tão pouco.

Só não virou herói, porque esqueceu de tirar os chinelões. Já estava de peito estufado, quando o coronel olhou para baixo e se torceu de rir. Só por isso, o dr. Aristides deixou de cumprimentar o Genival.

- Homem que deixa a mulher dele fazer aquilo, não merece a amizade de gente decente.

De fato, era uma vergonheira o jeito que seu Genival se deixava levar. Quando por uma distração de São Pedro, nevou neve legítima e branca em Vila Velha, seu Genival entusiasmado entrou em casa correndo e no meio da sala esbarrou com a mulher.

- Neve, minha veia.

Levou uma vassourada em plena cara e ainda foi obrigado a limpar o assoalho durante uma semana. Também um ano depois, quando pegou dez contos na loteria, entrou em casa a passo, calçou os chinelões e só depois deu a notícia.

- Ganhei na loteria, minha veia.

Mas qual, dona Zefa nem queria saber de loteria, só estava era impressionada com a cinza do cigarro que ameaçava cair.

- Caiu te mato.

Assim, já se vê, dona Zefa só tinha um amor na vida e amava tanto que passava três horas caminhando pela casa de olhos baixos, enquanto dizia:

- Que beleza, que beleza!

De fato, as vizinhas sempre citavam o assoalho de dona Zefa como uma das sete maravilhas do mundo. Só que não há lugar na terra para tanta perfeição. Um belo dia, o Gran Circo Argentino desembocou em Vila Velha e nem bem estava instalado, El Diablo, um leão azedo que já havia comido dez ou doze domadores, descobriu que a sua jaula estava aberta e resolveu dar um passeio. Ninguém deu pela coisa, porque era meio-dia e meio-dia em Vila Velha era início da sesta, doença que contagiava até o pessoal de fora. Por isso El Diablo pôde passear tranquilamente pela rua principal, pular uma cerca, comer tranquilamente três galinhas no galinheiro do seu Salustiano e depois entrar no quintal do seu Genival. Galinha não havia, porque dona Zefa morria só de pensar em titica caindo no seu assoalho. O gato ao ver o primo maior, ficou com dois metros de altura e subiu de ré para o telhado. El Diablo andou pelo quintal como quem não quer nada, cheirou aqui, cheirou lá e bocejou. E quando bocejou, espiou pela porta da cozinha e deu com a sala de dona Zefa, brilhando na penumbra fresquinha. El Diablo resmungou qualquer coisa e entrou casa a dentro. Foi até a porta do quarto, espirrou quando sentiu o cheiro do seu Genival que dormia, torceu o focinho para a sesta de dona Zefa e se esparramou no assoalho. A sala era tão fresquinha que El Diablo arrotou de satisfação e foi isso que acordou dona Zefa.

- Genival, tu ta com indigestão.

Genival continuou roncando e dona Zefa se acomodou para continuar na sesta, quando nisso, deu com rabo do bicho – que aparecia pela fresta da porta. Foi ver e ficar de pé.

- Era só o que me faltava.

Dona Zefa pulou da cama, calçou os chinelões de feltro e abriu a porta.

- Já daí!

El Diablo só abriu um olho. Examinou aquela figura gordinha na sua frente e tornou a fechar o olho. Foi o olho se fechar e dona Zefa perdeu a paciência.

- Já te mostro, animal dos infernos!

Saiu arrastando os pés para a cozinha, passou a mão na vassoura e se plantou na frente do leão.

- Caminha, sai daí!

Só neste momento, El Diablo percebeu que estava metido numa situação muito grave. Olhou dona Zefa e roncou enrolado como a dizer “Não me amole, mulher”. E aí, por puro desprezo, coçou a orelha como se fosse um gato bobalhão qualquer. Um chumacinho de pelos saiu de trás da orelha, flutuou um nadinha e caiu maciamente no chão. O berro que dona Zefa deu, largou o Genival sentado na cama e o leão sentado na sala. Os dois não sabiam de onde tinha vindo aquele guincho. Mas no segundo seguinte, dona Zefa rodopiou a vassoura no ar e largou um vassouraço em plena cara de El Diablo. E nem bem o leão esbarrou nas cadeiras, já levou outro vassouraço e dali para frente só queria sair pelo primeiro buraco que encontrasse. Se atirou para o quarto, pisou na barriga do seu Genival e saltou pela janela. O coitado do seu Genival ficou três horas estaqueado na cama abrindo e fechando a boca sem sair nada, enquanto dona Zefa furiosa limpava o assoalho.

No dia seguinte, o circo enrolou a lona e foi embora.

- Falta de vergonha.

- Seu astro principal estava desmoralizado. E dona Zefa, por mais que o pessoal quisesse provar que leão não era perigoso, só dizia:

- Perigoso nada, então não conheço? É um gatão que só sabe encher a casa de pelo.

E seu Genival inchava de orgulho e dizia:

- A veia sempre foi muito macho.

No que El Diablo concordava plenamente. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 70)

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