sexta-feira, 6 de março de 2020

MR. MILES

Mr. Miles

Em 11 de setembro, nas savanas do Quênia 

Mr. Miles* - O Estado de S.Paulo
Sem preâmbulos ou considerações sobre seu atual paradeiro, nosso correspondente enviou a resposta à pergunta da semana:
Querido mr. Miles: há 12 anos, no exato dia em que lhe escrevo este e-mail, eu estava em Montreal, no Canadá, e acompanhei, sem acreditar no que via, o ataque múltiplo aos Estados Unidos com a icônica imagem da queda das Torres Gêmeas do World Trade Center. Fiquei preso na cidade por alguns dias porque todos os voos foram cancelados. Lembro-me de ter ligado à minha mulher, pedindo a ela que fosse a um supermercado em São Paulo e fizesse um grande estoque de provisões. Minha sensação foi a de que o mundo nunca mais seria o mesmo e acautelei-me para que pudesse ser um dos sobreviventes. De fato, o mundo mudou muito desde então - mas não tão catastroficamente quanto eu pensava. E o senhor: como passou essa data e como acha que ela afetou nosso planeta? Miguel Ortiz de Almeida, por e-mail

"Well, dear Mike: muito bem formulada a sua pergunta. Creio que cada um dos meus leitores se lembra, perfectly, do que fazia naquele fatídico 11 de setembro. E, believe me: ouvi as mais variadas reações. Pessoas que levaram anos para recuperar a confiança e, therefore, resolveram abrigar-se na teórica segurança de sua vida cotidiana. Outras, I must say, que fizeram o contrário: diante da fragilidade de tudo (e tudo, naquele caso, incluía a maior potência militar do mundo), largaram seus afazeres cotidianos e ousaram provar novas formas de viver. Com mais intensidade e mais riscos, de modo a usufruir de cada momento como nunca mais (sorry, my dear Vinicius, mas era necessário, nesse caso, que eu o plagiasse).

O pior de tudo é que muitos não se curaram. Até hoje há gente que abandonou o prazer de viajar. Ouso dizer que esse ato de conhecer o próprio planeta - dar-se ao direito de esmiuçá-lo e senti-lo como se faz com as flores do próprio jardim -, foi a vítima mais inocente daquela ignomínia.

Eu me lembro de Paul - é como se o visse agora na minha frente. Ele era o motorista do carro que me levava da reserva de Masai Mara, no Quênia, para a capital Nairóbi, de onde eu retornaria a Londres. Entre longos chiados e interferências que assolavam o rádio de sua Land Rover, ouvimos uma longínqua transmissão relatando o inenarrável. A cada frase que escutávamos, eu me lembrava, atônito, de mais e mais amigos que tinha (e, thank God, ainda tenho) em Nova York. A imensidão do fato impedia-me, I must say, de ter uma visão ampla sobre as consequências daqueles atentados. Confesso que meu raciocínio era tacanho e confuso. Não pensei em aeroportos fechados, não supus que o mundo do viajante iria se tornar o inferno de burocracia e procedimentos de segurança em que se transformou. Não imaginei, my God, que nunca mais poderia levar meu cantil de uísque para o interior de uma aeronave.

Yes, Michael, o mundo piorou desde aquele 11 de setembro, por conta de seres sedentários que defendem seus valores até a morte e jamais tentam entender razões e valores de outros, mas só vim a entender essa lógica nefasta muito tempo depois. Naquele dia, my friend, eu estava anestesiado. E só mais tarde percebi que Paul estava calado (o que era incomum) e chorava. O carro percorria a savana; antílopes, zebras e gnus pastavam indiferentes. Foi quando Paul, balbuciante, fez a pergunta mais avassaladora do dia: 'Como vou alimentar meus filhos agora, mr. Miles?'

Eu não soube responder. Mas entendi que Nova York, o Quênia e o resto do mundo tinham se tornado um único lugar."

Fonte: O Estado de S. Paulo

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