sábado, 1 de janeiro de 2022

NÃO OLHE PARA CIMA, OLHE PARA O LADO

NÃO OLHE PARA CIMA, OLHE PARA O LADO
Alexandre Schneider

É preciso compreender que a raiz dos nossos problemas não vem de fora, é fruto de nossas escolhas individuais e coletivas

"Não Olhe para Cima", filme produzido pela Netflix, vem ocupando atenção da mídia, das redes e das conversas neste fim de ano. Como é comum nestes tempos binários, não há matizes entre o elogio rasgado e a crítica mordaz ao filme, que usa uma metáfora um tanto surrada —a ameaça que vem do espaço para dizimar o planeta— como gancho para uma sátira a estes tempos de negacionismo científico, governantes despreparados, perseguição a funcionários públicos que ousam "discordar da versão oficial" e da "sociedade do espetáculo" em seu ponto mais alto.

"Aruanas", dos brasileiros Estela Renner e Marcos Nisti, também aposta em um modelo de "entretenimento engajado", mas nos pede para olhar para o lado, não para cima. Com um elenco estrelado (as atrizes Camila Pitanga, Débora Falabella, Leandra Leal, Taís Araújo e Thainá Duarte) e ótima produção, a trama foca em um inimigo silencioso —a poluição ambiental— e no financiamento público do veneno que aos poucos vai nos matando: o combustível fóssil. Completa o thriller ambiental o desfile de lobistas, políticos, milícias e outros personagens com os quais nós brasileiros estamos acostumados há tempos.

Em tempos de resoluções de ano novo, as melhores pistas para o engajamento em causas comuns parecem vir da série brasileira. Propõe em vez de apelar à racionalidade, tocar o coração das pessoas. Compreender que a raiz dos nossos problemas não "vem de fora", é fruto de nossas escolhas individuais e coletivas. Falar aos "convertidos" pode render boas piadas à mesa do bar ou uma competição de franzir de cenhos, mas não ajuda a mobilizar o conjunto da sociedade.

As enchentes do início do ano no Acre, que deixaram mais de 120 mil desabrigados, a tragédia das enchentes no sul da Bahia, que levou milhares de famílias a abandonar suas casas, deixando cidades inteiras embaixo d’água, são apenas alguns dos sinais de que vivemos em situação de emergência climática.

Para frear o desastre ambiental já contratado são necessárias medidas nas cidades, no campo e na floresta. Por lidar com o futuro —que teimamos achar distante— e por exigir esforços e custos individuais em troca de um bem coletivo —restrição ao uso de automóveis, do uso do solo em determinadas áreas das cidades e outras— os políticos não veem incentivos em adotar as medidas necessárias. Sem uma estratégia que aproxime a pauta da "vida real" dos brasileiros, essa será uma batalha perdida.

Precisamos "olhar para o lado". Para os milhões de brasileiros que passam fome, que não sabem se terão o que comer amanhã, estão desempregados, morando nas ruas ou em situação precária, em territórios controlados pelo crime ou pela milícia, ou cujos filhos sofreram longe das escolas ou deixaram de lado o sonho do ensino universitário.

Não seremos capazes de construir o futuro convivendo com um número ciclópico de brasileiros que não têm o que retirar do presente. Não há esperança possível onde reina a desesperança. A compreensão do sentido da interdependência requer compaixão, mas pode ser alcançada até mesmo por cálculos desprovidos da moral altruísta. É questão de sobrevivência.

A melhor resolução de ano novo que podemos adotar é a de olhar para o lado e seguir um dos conselhos de Desmond Tutu: "Faça o seu pouco de bem onde você está; são esses pequenos pedaços de bem juntos que inundam o mundo."

Feliz ano Novo.

Fonte: Folha de S. Paulo

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