segunda-feira, 6 de junho de 2022

DNA DA SAUDADE

O DNA DA SAUDADE
Fabrício Carpinejar

Minha esposa está mais parecida com a sua mãe Clara desde que ela faleceu há seis anos.

Se ela estivesse viva, lado a lado, morando na mesma casa como antes, não estaria tão parecida.

Nem quando nasceu se mostrava com tantas convergências físicas.

É o DNA da saudade. Muito mais veemente do que a determinação biológica. Ainda não foi estudado o suficiente. Ainda não sondamos o quanto a morte de quem é próximo afeta o nosso organismo. Resta a poesia para sugerir hipóteses.

Quando você perde alguém que ama, assume a gratidão dos hábitos, evidencia as semelhanças, você lembra mais dos gestos e nega menos as diferenças.

Esforça-se para que a pessoa não desapareça, incorporando conselhos e manias.

Torna-se, assombrosamente, uma alma gêmea. Quando o corpo de quem amamos vai embora, procuramos conservar parte do temperamento.

Ocorre uma transposição da experiência em comum. Uma transcrição de uma vida por uma outra vida.

Quando estamos juntos, há uma briga para ser único, singular, incomparável. Diante da ausência, você já muda e se propõe a uma homenagem consciente. Não há mais competição de ego, disputa por autoridade. 

Vem uma liberdade do sofrimento, de saber o quanto aquela presença significava após a sua morte.

A saudade vai moldando os nossos traços para a plena aceitação daquele que nos antecedeu ou nos acompanhou ao longo da convivência.

Beatriz nem deve notar. Mas é mais fácil encontrar Clara em seu rosto do que na lápide.

Ela conversa mais com quem encontra na rua, como a sua mãe. Não importa se é na feirinha ou na farmácia. Ela passou a colecionar óculos e chapéus, simpatias de sua mãe. Ela separa roupas para caridade mensalmente, como fazia a sua mãe. Ela visita ou telefona para as melhores amigas de sua mãe. Ela prepara mensalmente bacalhau, prato predileto de sua mãe, e reza na hora de comer. Ela organiza viagens para Ouro Preto ou Tiradentes a cada semestre, lugares em que a sua mãe ficava mais à vontade. Ela tem um gaveta para lenços e echarpes, ritual de sua mãe. Ela começou a tomar mais chá durante o dia, prática de sua mãe. Ela adora adquirir colherzinhas especiais para as xícaras e sousplats para pôr embaixo dos pratos, macetes de sua mãe. Ela não abre mão de praia nas férias, e tem até experimentado maiôs, paixões de sua mãe. Ela inventou de ligar no viva voz e andar conversando, como a sua mãe. Ela espalha camisas e calças pela cama antes de definir o figurino, tal a sua mãe realizava de manhãzinha. Ela separou os grãos em potes na cozinha, escrevendo rótulos, como a sua mãe. Ela mantém uma agenda física com endereços e telefones mais frequentes, como a sua mãe. Ela tem se iniciado no medo de trovões e relâmpagos, como a sua mãe. Ela tem um guarda-chuva no carro, na bolsa e em casa, como a sua mãe. Ela separou produtos de beleza em necessaires transparentes, para localizar com facilidade o que deseja, como a sua mãe.

Beatriz é ainda mais Beatriz porque hoje ama a sua mãe além do tempo.

Fonte: Facebook

Nenhum comentário:

Postar um comentário