quarta-feira, 3 de agosto de 2022

CRISTÃOS NOVOS E SOBRENOMES

Djalma Carvalho

Em 18 de fevereiro de 1957, com carteira profissional devidamente assinada, ingressei no serviço público federal, admitido como escrevente-datilógrafo no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), lotado na Residência/Escritório de Santana do Ipanema.

Antes, desde meados de 1953, meu trabalho na cidade era o de balconista de forma clandestina, sem registro trabalhista ou previdenciário, fato que impediu minha aposentadoria aos 50 anos de idade de acordo com a legislação trabalhista então em vigor.
No novo emprego, vida mansa, de salário modesto, de apertura, é bem verdade. Mas ambiente saudável e alegre, como eu disse em crônica publicada em 14/11/93, que se acha inserida no meu livro Caminhada, páginas 25/26.

O ambiente no escritório era maneiro, de pouco trabalho e muita conversa, salvo em fim de quinzena ou fim de mês, quando medições de montes de terra transformados em metros cúbicos chegavam à sala de estatística e os apontamentos da frequência dos trabalhadores em obras no campo eram entregues ao setor de pessoal.

Cabia-me datilografar relatórios, correspondências e folhas de pagamento. De várias páginas das folhas de pagamento recolhi nomes e sobrenomes estranhos, curiosos, muitos deles, acredito hoje, fora da tradição e da origem da família brasileira, certamente trazidos de Portugal durante o Brasil colonial.

Sobre nomes curiosos, no setor de cadastro no Banco do Brasil em Santana do Ipanema, encontrei no fichário Maria da Glória Rainha de Portugal (?), possivelmente nome de esposa de antigo mutuário do banco.

Há pouco, debrucei-me, curiosamente, em pesquisa sobre Inquisição e Cristãos-Novos. A Inquisição veio de tempos imemoriais. No século XII já existia como tribunal eclesiástico instituído pela Igreja católica para investigar crimes contra a fé católica.

Sabe-se que o efetivo processo de colonização portuguesa no Brasil ocorreu a partir de 1530, no reinado de D. João III (1521-1557), soberano muito católico. Apesar do apelido de O Piedoso, a Inquisição em Portugal foi instituída, por sua iniciativa, em 1536, e o primeiro Auto de Fé da Inquisição Portuguesa se deu em 1540.

O papa Paulo III, em 1542, deu início à Inquisição Romana, contrapondo-se ao crescimento do protestantismo, com o qual o monge Lutero, com suas derivações contidas no Calvinismo e no Anglicismo, ganhava força na Europa. O Concílio de Trento, por sua vez, convocado pelo papa Paulo III e realizado no período de 1545 a 1563, debateu e reforçou algumas questões doutrinárias do catolicismo e outras para barrar o avanço do protestantismo na Europa e no mundo.

A Inquisição no Brasil colônia passou a vigorar a partir da década de 1590, quando o Tribunal do Santo Ofício de Portugal visitou os colonos pela primeira vez. Em 1591 visitou Pernambuco e Bahia, para verificar as atividades hereges suspeitas nessas capitanias.

Criada em 1536, a Inquisição de Portugal foi extinta e 1821, tendo durado 285 anos.

Antes, porém, em 1492 os reis católicos Fernando e Isabel expulsaram a população judaica da Espanha, que foi acolhida por D. Manuel I em Portugal. Mas D. Manuel I, em 1497 casou-se com Isabel de Aragão, filha e herdeira dos reis católicos da Espanha. Submetido a cláusulas do casamento de perseguição a muçulmanos e judeus, D. Manuel I propôs aos milhares de imigrantes que se convertessem ao catolicismo ou deixassem o país. Mais de 20 mil, segundo historiadores, decidiram pela segunda opção. O rei então decidiu fechar os portos de Portugal para impedir a fuga, passando, daí, a forçar essa população à conversão ao catolicismo.

Os recém-convertidos passaram a ser chamados de cristãos-novos ou marranos e vistos com desconfiança pela população portuguesa, além, e principalmente, pelos clérigos. A acusação contra os cristãos-novos era implacável com denúncias de vizinhos e inimigos. Perseguidos e presos, os cristãos-novos eram submetidos à tortura à semelhança dos acusados de comunistas pela ditadura militar brasileira. Disse a historiadora da USP Anita Novinsky: “Os cristãos-novos foram alvo de um ódio sem precedentes na história, até então.” Os condenados à morte eram fatalmente levados à fogueira.

Os cristãos-novos enfrentaram grande dilema nos primeiros séculos no Brasil. Segundo a historiadora já citada: “Marrano era tratamento ofensivo dado antigamente pelos portugueses aos mouros e judeus.” (Informação colhida em consulta à Wikipédia, enciclopédia livre).

A mesma historiadora disse que um em cada três portugueses que ingressavam na Colônia era cristão-novo. Com o risco de serem identificados pela Inquisição e acusados de crime os cristão-novos “abandonaram” os sobrenomes “infiéis” para adotar novos “inventados”, baseados exclusivamente em nomes de plantas, árvores, frutas, animais e acidentes geográficos.

Daí, então, eram cristãos-novos todos os que tiveram os sobrenomes Carvalho, Pinheiro, Raposo, Pereira, Serra, Monte, Rios, Ribeiro, Leão, Carneiro, Gato, Lima, Porto, Lobo, Gameleira, Falcão, Pena, Pinto, Pitombeira, Rosa, Torres, Jatobá, Jambo, Palmeira, Rocha, Besouro, Ferro, Acácia, assim por diante.

Voltemos ao assunto inicial desta conversa. Na folha de pagamento que eu datilografava no Dnocs, identifiquei certo sobrenome retirado de animal, perfeitamente enquadrado à categoria de cristãos-novos brasileiros. Tratava-se de comissionado no cargo de feitor de obras, cidadão respeitável, de confiança do chefe residente e pai de família exemplar. Pernambucano de nascimento, sem nenhum preconceito a respeito do seu nome de batismo, José Veado da Silva era servidor muito querido por seus colegas de trabalho. Muitas vezes ele esteve no escritório, no meu trabalho, e poucos sabiam, historicamente, a origem do seu sobrenome.

Finalmente, e não obstante as informações colhidas em pesquisa, sentenciou, contrariamente, a já citada historiadora Anita Novinsky, autora da dissertação “O mito dos sobrenomes marrano”, que disse: “Em minhas investigações não encontrei prova documental de que nomes de árvores, animais, plantas ou acidentes geográficos tenham pertencido apenas ou quase sempre a marranos.”

Maceió, junho de 2022.

Fonte: https://www.maltanet.com.br

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