O sexo dos anjosDurante anos, quando caía na tentação de achar que sabia tudo, procurava um jeito de me humilhar, lendo bulas de remédio das quais nada entendia. Funcionava. O resultado é que ia para o pólo oposto, achando que não sabia nada, que estava por fora do mundo e da vida. Evidente que ficava mais perto da verdade.
Outro dia, tive a graça de encontrar novo recurso para a humildade, quase diria, para a humilhação. Passei por um canal que exibia um papo descontraído de entendidos em bandas, ritmos novos, tão novos que o "velho rock" era considerado pré-histórico, do tempo das cavernas, anterior à criação do mundo, quando reinavam o caos e as trevas.
Esforcei-me para acompanhar aquilo que me parecia o raciocínio dos rapazes, espalhados informalmente por um cenário informal, um de cócoras, outro em posição fetal, todos acreditando que viviam o máximo em termos de estar por dentro.
E estavam mesmo. Bem verdade que não consegui captar o "dentro" deles. Faziam distinções entre dois tipos de banda que emitiam os mesmos compassos, os mesmos berros. As letras, obviamente, em inglês, sendo que dois dos rapazes confessavam que não sabiam inglês, mesmo assim se declaravam amarrados no que elas diziam, ou melhor, pregavam, todas tinham um apelo contra o consumo --besta negra da turma que, contraditoriamente, mais consome.
Sem nada entender daquilo, tive a impressão de que estava assistindo a um dos concílios medievais em que se discutia o sexo dos anjos. O entusiasmo com que debatiam as tendências, os últimos lançamentos, só era menor quando chegavam ao consenso de que, depois deles, nada mais de novo existiria sob a luz do sol --por sinal, uma verdade que foi dita por Salomão, muito antes de Cristo e do rap nascerem.
Fonte: Folha de S. Paulo - 24/05/2005
Nenhum comentário:
Postar um comentário