Autor: Nilo Sergio Campos
Vivemos numa era paradoxal. Nunca antes a humanidade teve acesso a tanto conhecimento acumulado, tantas bibliotecas digitais, cursos, pesquisas, dados e interpretações à distância de um clique — e, no entanto, a estupidez nunca foi tão celebrada, protegida e transformada em espetáculo. É como se estivéssemos assistindo a um funeral silencioso da sabedoria, enquanto os aplausos mais entusiasmados se voltam para os bufões da contemporaneidade, não apenas tolerados, mas idolatrados.
A idolatria da estupidez não é apenas a preferência pelo raso, mas a exaltação consciente da ignorância como virtude. Em nome da autenticidade, do “direito de opinar” e da pretensa liberdade de ser “quem se é”, vemos multiplicarem-se tribos que não apenas rejeitam o conhecimento, mas que zombam dele. Na praça pública digital, não vence quem argumenta melhor, mas quem grita mais alto, ofende com mais graça ou reduz o complexo a memes vazios de sentido.
O fenômeno, porém, não é espontâneo. Ele é cuidadosamente cultivado. A cultura midiática e as redes sociais encontraram na idiotização um filão econômico de ouro: conteúdo rápido, superficial, emotivo e muitas vezes indignante rende engajamento. Quanto menos reflexão, mais cliques. Quanto mais simplismo, mais viral. A sabedoria — lenta, profunda, exigente — não compete nesse ambiente, porque não se presta a estímulos instantâneos.
Outro pilar dessa idolatria está na crise da autoridade intelectual. Antes, o saber era referenciado: filósofos, cientistas, mestres e estudiosos eram consultados antes de decisões complexas. Hoje, qualquer opinião dita com convicção, mesmo sem base factual, encontra seu séquito fiel. Não importa se é sobre saúde pública, física quântica ou história — o critério é a simpatia ou afinidade ideológica, não a veracidade. Essa inversão desmoraliza o trabalho sério e coloca o saber especializado como “apenas mais uma opinião”, nivelando tudo pelo chão da ignorância.
A morte da sabedoria não significa apenas a ausência de conhecimento, mas a perda da capacidade de discernir. Saber não é acumular dados, mas filtrá-los, interpretá-los e integrá-los à vida. Quando essa habilidade morre, a sociedade se torna refém de narrativas fabricadas e de “líderes” que prosperam justamente pela manipulação das massas desprovidas de senso crítico. É por isso que a idolatria da estupidez é perigosa: ela é terreno fértil para tiranias e populismos, pois se alimenta de um povo que não sabe mais distinguir entre verdade e mentira, entre o essencial e o irrelevante.
Há ainda um aspecto cultural profundo: a demonização do pensamento difícil. Em muitos espaços, quem usa vocabulário rico, cita autores clássicos ou apresenta raciocínios complexos é tachado de “arrogante” ou “elitista”. Essa rejeição não é inocente: é a vingança da mediocridade contra a excelência, o triunfo da preguiça intelectual sobre o esforço disciplinado. O resultado é uma homogeneização para baixo, onde todos são obrigados a falar e pensar como se estivessem permanentemente numa conversa de bar.
É preciso compreender que a sabedoria não morre de causas naturais — ela é assassinada. Morre porque escolas se transformam em fábricas de diplomas, não em laboratórios de pensamento. Morre porque famílias terceirizam a educação moral e intelectual aos algoritmos. Morre porque o entretenimento substituiu o estudo, e a autoindulgência substituiu a curiosidade. E, sobretudo, morre porque poucos estão dispostos a pagar o preço do conhecimento: o desconforto de confrontar as próprias certezas e a humildade de reconhecer a própria ignorância.
Recuperar a sabedoria não será obra de decretos, nem de campanhas governamentais, pois o Estado moderno muitas vezes lucra com a perpetuação da ignorância. Será, sim, um ato de resistência individual e comunitária: ler mais e melhor, ouvir mais do que falar, buscar mestres de verdade, cultivar silêncio para refletir, e resistir à tentação da informação instantânea como substituta do pensamento profundo.
Se a idolatria da estupidez é a religião deste tempo, lutar pela sabedoria é o último ato de rebeldia que ainda pode nos salvar. E, ao contrário do que se pensa, a sabedoria não é incompatível com a simplicidade — mas exige uma simplicidade conquistada pela maturidade, e não aquela imposta pela preguiça mental. Talvez estejamos mesmo no velório da sabedoria, mas ainda há aqueles que se recusam a jogar terra sobre seu caixão.
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