quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

O SUICIDA

O SUICIDA
Por Sérgio Jockymann

Pois, foi na sala reservada do Clube do Comércio que seu Matias e o dr. Orestes se encontram numa rodada de pôquer, como há muito tempo Vila Velha não conhecia. Às três da manhã, tiraram o notário da cama, porque dinheiro não havia mais e seu Matias havia proposto:

- Tudo o que eu tenho, contra tudo o que tu tem.

E o dr. Orestes, depois de espiar as cinco cartas que tinha na mão respondeu:

- Pago.

Veio o notário e legalizou tudo. Até o coronel saiu da cama para ser testemunha. Depois que as duas escrituras foram para cima da mesa, o presidente do clube pediu champanha:

- Vamos beber primeiro e mostrar o jogo depois.

Beberam a champanhe, acenderam os palheiros e o coronel. que morria de curiosidade, ordenou:

- Mostrem o jogo.

Seu Orestes sorriu e foi pondo uma carta atrás da outra, em cima da mesa:

- Quatro reizinhos e um chofer.

Seu Matias engoliu em seco, ficou branco como lençol lavado e respondeu com um fiozinho de voz:

- Quatro dez.

Ninguém riu. O coronel disse mais tarde que naquele momento, a sala cheirava a defunto. Seu Matias se levantou, pediu o revólver e disse:

- Se me dão licença, vou me matar.

O presidente do clube quis impedir, mas o coronel não deixou.

- O homem tá na miséria. Numa situação dessas, o melhor é morrer logo.

Seu Matias espichou um olho dolorido para o dr. Orestes, mas o outro fingiu que estava contando as fichas e nem falou em devolução. Isso decidiu seu Matias de uma vez:

- Pra não dar trabalho, vou pras barrancas do Uruguai. Assim arrebento a cabeça e já caio dentro d'água.

Todo mundo concordou que era uma saída muito higiênica. Seu Matias saiu duro, apanhou o Ford de Bigode e sumiu. No dia seguinte, o coronel foi visitar a viúva que após ouvir a história toda, teve uma declaração histórica:

- Tomara que não morra de vereda.

O dr. Orestes ficou chateado, disse no Café Central que não tinha coragem de tirar pão da boca de viúva e devolveu a estância. Teve antes, o cuidado de retirar todo o gado, mas enfim, ninguém é perfeito. Vinte e dois dias depois, foi achado um corpo nas barrancas do Uruguai. O que sobrava dele foi levado para a autópsia e o resultado surpreendeu todo mundo:

- Morte por afogamento.

A viúva disse que aquilo era de se esperar porque o Finado sempre mudava de ideia em cima da hora. E esclareceu:

- Vai ver que caiu no rio e se afogou.

Seu Matias foi enterrado com todas as honras e na hora do inventário, apareceu uma apólice de seguros no valor de duzentos contos, o que era uma barbaridade de dinheiro. Como a morte tinha sido acidental, a companhia após alguns meses de demora, pagou tudo. O dinheiro do seguro virou gado e a viúva ficou tão bem de vida, que na missa do primeiro ano, declarou:

- Uma coisa eu tenho que reconhecer, tudo o que o Matias não deu quando vivo, me deu depois de morto.

Isso provocou uma discussão no Café Central sobre a utilidade dos defuntos, que terminou com uma conclusão unânime: viúva não presta. Bem, o tempo passou, a viúva criou os filhos, casou as filhas e estava nisso, quando um dia, ou para falar a verdade, numa noite, bateram na porta da estância, ela foi abrir e caiu ao comprido. Só acordou uma hora depois, abanada pelo Finado.

- Mas tu não morreu, peste?

Seu Matias balançou a cabeça:

- Cheguei lá e achei que era bobagem dar um tiro na cabeça por causa de um azarzinho à toa.

- Mas e o defunto?

- Que defunto?

E foi aí que seu Matias soube de tudo o que tinha acontecido na Vila Velha, enquanto ele viajava os mundos do Uruguai e da Argentina. Ouviu toda a história sem abrir a boca e quando a mulher terminou, ele pensou meia hora e disse:

- Mulher, tenho que reconhecer que tu tá melhor comigo morto do que comigo vivo.

Ela suspirou e disse que era a mais pura das verdades.

- Não me leva a mal, Matias, mas te manda que tu faz melhor.

O Matias também concordou que era a melhor solução. Mas tinha um porém.

- Mulher, tu me deve cem contos.

A viúva ficou danada da vida e disse que aquilo não era coisa de se falar. Mas seu Matias teimou que metade do lucro da morte era dele e um minuto depois, os dois estavam num bate-boca tremendo. Foi então que a viúva, teve uma ideia. Foi buscar o baralho e propôs:

- Carta mais alta.

Seu Matias esfregou as mãos e aceitou, com uma condição:

- Duzentos contos ou nada.

A viúva roncou que estava bem. Embaralharam as cartas e seu Matias ofereceu:

- Primeiro as damas.

Ela tirou a carta e não mostrou. Seu Matias então pescou uma outra e virou em cima da mesa:

- Rei, mulher.

Ela virou a dela:

Ás, marido.

No dia seguinte, encontraram seu Matias com uma bala na cabeça nas barrancas do Uruguai. Foi um escândalo enorme, a companhia de seguros exigiu a devolução do dinheiro e a viúva, embora tivesse chorado um mês inteiro, teve que devolver tudo. Mal terminou de pagar declarou:

- Aquele infeliz nem depois de morto me ajudou.

E no Café Central foi aberta a discussão sobre a utilidade dos defuntos, que após uma noite de debates teve a mesma conclusão: viúva, decididamente, não presta. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 50)

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