quarta-feira, 15 de abril de 2020

A CAMA

Por Sérgio Jockymann
Pois, o Polaco sempre foi meio maluco. A começar por aquela mania de andar catando cobra em tudo que era canto, que deixava o pessoal de Vila Velha de cabelo em pé. A casa do Polaco vivia cheia de caixas esquisitas que, uma vez por mês, saíam de Vila Velha para a Europa. Ninguém se metia com aquele carregamento em Vila Velha, mas em Porto Alegre houve um funcionário da Alfândega que teimou que era contrabando e enfiou a mão lá dentro. Berrou cobra e caiu duro com três jararacas agarradas no pulso. Depois disso, as caixas do Polaco ficaram em paz. É verdade que o coronel tentou descobrir quem diabo podia se interessar pelas cobras da cidade, mas o Polaco não falava português e o coronel não falava polonês, pelo que os dois desistiram de se entender. O coronel encerrou o assunto com uma frase histórica:

- Hoje em dia até porcaria se vende.

Ora vai que o Polaco numa dessas caçadas apanhou uma papa-pinto, feia como todos os diabos, com aquele papo amarelo e dois metros e meio de comprimento, que se tomou de amores por ele. Por mais que o Polaco enxotasse a bicha de casa, lá estava ela no outro dia. Uma semana depois os ratos sumiram como por encanto e o Polaco adotou a papa-pinto, que andava pela casa como se fosse um cachorrinho. As visitas não gostavam muito de ver aquela bicharoca deslizando pelo assoalho, mas o Polaco numa horrenda mistura de português e polonês explicava que papa-pinto não tem veneno. Duro de acreditar num negócio desses, porque cobra feia estava ali, com aquele comprimento todo e aquela finura nojenta de cipó apodrecido. Mas era a pura verdade. A papa-pinto só comia seu três ovos por dia e alguns bichinhos distraídos. Fora disso só fazia dormir ao sol. Mas aí veio o inverno e uma noite, sem que o Polaco pedisse, a danada da cobra subiu pelo pé da cama e se refestelou embaixo das cobertas. O Polaco riu, coçou a cabeça da cobra e dali por diante a desgraçada virou companhia de cama. Bem, mas aí Dom Felipe resolveu apoiar o levante paulista e se meteu pelo mato para recrutar uma tropa, a fim de conquistar Vila Velha. E quando já tinha dezesseis malucos, bateu na casa do Polaco numa noite de esfriar até brasa viva.

- Dom Felipe, comandante da Tropa Revolucionária Gaúcha.

O Polaco respondeu com a sua mistura indecifrável e Dom Felipe não fez questão de entender.

- A casa tá confiscada provisoriamente.

Meia hora depois, o ordenança implicou que as caixas continham cachaça e meteu a mão lá dentro da maiorzinha. Nem chegou a tirar. Ficou ali vidrado, olhando para os outros sem dizer palavra, até que virou o corpo e caiu. Meia hora e já estava todo preto. Dom Felipe ficou danado da vida.

- Tranca o Polaco num quarto e joga esse bicharedo lá dentro.

O Polaco ainda tentou explicar que não tinha culpa, mas não adiantou. Foi jogado num quartinho com mais de oitenta cobras de todos os tamanhos. Ficou num canto, duro como estátua, enquanto o cobraredo todo se remexia pelo chão. Dom Felipe deu a justiça por concluída e foi examinar o resto da casa. Quando deu com a cama, arrancou as botas e avisou a tropa:

- Cinco da manhã me acorda. Vou dormir um sono só.

A tropa se aboletou pela sala e pela cozinha e Dom Felipe começou a roncar como um rolo de pia esvaziando água. E roncando ficou até que, lá pela meia-noite, acordou com um visgo escorrendo pelo braço esquerdo. Meio que acordou e ainda meio acordado, afastou aquela coisa e virou de borco. Aí acordou por inteiro, porque justamente debaixo de sua barriga, a papa-pinto começou a se espremer para se livrar daquele peso. Dom Felipe abriu a boca para gritar, mas tudo o que saiu foi um bafo. Quando ele puxou o ar de volta teve um soluço que estremeceu a barriga e a papa-pinto, mais do que depressa, desceu pelo umbigo e enfiou a cabeça pelo meio das pernas de Dom Felipe. Nem foi berro o que ele deu, mas um ronco de porco sangrando. Quando a tropa entrou no quarto ele estava caído para o lado, com os olhos vidrados. O Fagundes ergueu as cobertas e deu com aqueles dois metros e meio de cobra e não quis saber de mais nada. Largou pela casa aos berros, com a tropa toda atrás. Cinco da manhã, o Polaco abriu a porta do quartinho e com passinhos de um centímetro cruzou o portal. Foi logo para o quarto, onde deu com Dom Felipe chorando como criança de colo. Deixou a revolução paulista no dia seguinte e se fechou na estância com rosário na mão. Recuperou o juízo, mas jamais recuperou a tranquilidade na cama. Por mais que a mulher pedisse e implorasse, teimava em dormir com uma calça de couro cru. E com ela morreu após doze anos de castidade mais absoluta, porque como dizia o Padre Ramão:

- Perdi o gosto pela vida.

E só o Polaco achava que era bem feito, mas de um homem que dorme com cobra pode-se esperar tudo na vida. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 123)

Nenhum comentário:

Postar um comentário