quarta-feira, 22 de abril de 2020

O FALSÁRIO

Por Sérgio Jockymann

Pois, até os cinquenta e quatro anos, o Antunes foi apenas um humilde tipógrafo de "O Independente", vibrante órgão usualmente semanal de Vila Velha, embora se tornasse sempre diário durante as campanhas políticas, quando era tão independente quanto pretendia. O Antunes apareceu em Vila Velha com quarenta anos e uma história comprida e embrulhada sobre uma litografia paulista, que chegou a ser a primeira da América do Sul e de repente faliu. Era um sujeito quieto e pacífico, que uma vez por semana visitava as meninas da Zoé, pagava duas cervejas e voltava para casa, onde passava noites de domingos, trabalhando com placas de chumbo, com uma finalidade que ninguém sabia e também não se interessava.

Até que um dia, pagou as duas cervejas com uma nota novinha de quinhentos mi réis e fez brotar uma pulga atrás da orelha da Zoé, que era mulher vivida e não tinha pulgas com tanta facilidade como outras pessoas. A Zoé virou e revirou a nota até que pediu para falar com o Antunes.

- Onde foi que você arranjou dinheiro novo?

O Antunes ficou com olhinhos de cobra e perguntou qual era o problema. A Zoé não olhou a nota, olhou o Antunes durante bem um minuto e ficou convencida.

- Antunes, esse dinheiro é falso.

O Antunes quase chorou.

- Como foi que você descobriu?

- Pelo tamanho dos teus olhos, infeliz. Conheço a freguesia.

Ele piscou duas vezes, depois começou a rir.

- Você é uma diaba de mulher esperta, Zoé.

Ela nunca foi modesta.

- Ah, isso sou mesmo.

O Antunes tornou a rir e confessou desavergonhadamente.

- Pois é dinheiro falso mesmo.

- Quem foi que fez?

- Eu.

A Zoé nunca pensou que o Antunes tivesse tanta capacidade e por isso levou um tempo enorme para acreditar naquilo.

- Como foi que você fez?

- Ah, isso é um segredo.

Pegou a nota com a ponta dos dedos e pôs de encontro à luz.

- Veja, tem até marca d'água.

A Zoé olhou e teve que reconhecer que era perfeita.

- Será que passa?

O Antunes se ofendeu.

- Se não passar, passo o resto da vida como frade. Levei quarenta anos para fazer essa obra prima.

A Zoé ainda estava desconfiada.

- Posso levar no banco?

- À hora que quiser.

No dia seguinte, a Zoé foi no banco, chamou o caixa e disse que achava que a nota era falsa. O caixa virou e revirou e deu o veredito:

- Verdadeira.

A Zoé não se convenceu e foi na coletoria. Mesma coisa.

- Tem certeza?

- Absoluta.

Foi aí que o diabinho da cobiça entrou no corpo da Zoé e naquela noite ela pagou duas cervejas para o Antunes.

- Antunes, você sabe que sou uma mulher de negócios.

O Antunes sabia.

Como diz o coronel, um artista sem um homem de negócios do lado termina na miséria.

O Antunes tornou a concordar. A Zoé encheu mais um copo, pediu um conhaque e propôs:

- Você fabrica e eu distribuo. Cinquenta po cento.

O Antunes rebentou numa gargalhada e disse que não.

- Sessenta para você, quarenta para mim.

O Antunes cada vez ria mais alto.

- Dou setenta por cento.

Só piorou a risada do Antunes. Diante disso, a Zoé achou que dez por cento era melhor do que nada e fez a proposta - cheia de humildade. Mas o Antunes negou novamente. A Zoé teve uma crise de choro, lembrou para o Antunes que sempre tinha lutado contra a sorte, que já estava chegando aos quarenta, que mais dez anos e só Deus sabe onde ela estaria, mas o Antunes continuou negando.

- Quer dizer que não quer me dar dez por cento?

- Não.

- Olho grande desgraçado, vou te rogar uma praga que teus dentes vão quebrar até comendo manteiga.

A Zoé era famosa pelas pragas que rogava, mas nem assim conseguiu fazer com que o Antunes mudasse de idéia.

- Mas que diabo, homem, qual é o problema?

De repente, o queixo do Antunes tremeu, os olhos se encheram de lágrimas e entre soluços ele desabafou:

- Cada nota de quinhentos mil réis me custa mais de cinco contos.

E a Zoé, que sempre foi uma mulher sensível, desandou a chorar também. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 131)

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