quarta-feira, 29 de abril de 2020

A CAMPANHA

Por Sérgio Jockymann
Pois um dia, toda a redação do vibrante órgão de imprensa de Vila Velha, "O Independente", composta de um diretor e três redatores, teve uma importante reunião a fim de tratar de graves problemas da cidade. O mais grave de todos era que "O Independente", que nos bons tempos chegava a vender 500 exemplares, agora a pau e corda conseguia vender 165. Cada cem exemplares não vendidos provocavam a despedida de um redator e assim os três restantes sentiam o problema de um modo muito particular. Quanto ao Alfredo, diretor proprietário, que nos bons tempos possuía duas castelhanas importadas, estava agora reduzido aos carinhos de sua legítima esposa, que era uma santa criatura, mas não dessas capaz de entusiasmar um marido para qualquer coisa mais violenta que um chá com bolinhos.

Vai daí que o problema de aumentar a circulação de "O Independente" era de fato de suma gravidade. O Armando, um dos redatores mais afoitos e sonetista famoso, chegou a sugerir uma campanha contra o coronel, mas o Alfredo depois de pesar os contra não achou nenhum pró e discordou:

- O que nós precisamos é de algo diferente.

Ora, no dia anterior, por falta de dinheiro o Arnaldo tinha sido convidado a sair da casa da Zoé e naquele momento queimava de raiva e amargura. E tão logo o Alfredo falou em algo diferente, a inspiração brotou de sua cabeça:

- Vamos lançar uma campanha de moralização.

O Alfredo pensou nas castelhanas e deu um suspiro. Mas como elas já tinham partido, se sentiu meio irmão do Arnaldo e aceitou a idéia.

- Isso mesmo. Vamos lançar uma campanha de moralização.

No dia seguinte, "O Independente" publicava na primeira página um violento soneto do Arnaldo, intitulado "Sodoma e Gomorra". Soneto que deu muito trabalho porque Gomorra só rimava com corra, desforra e borra e por mais que o Arnaldo procurasse não encontrou nenhuma outra rima. Ao contrário do que se esperava, o soneto não teve a mínima repercussão, sendo que ainda para mal dos pecados, um gaiato encontrou uma outra rima para Gomorra e fez uma paródia pornográfica como o diabo em noite de sábado.

Alfredo então achou que um soneto não bastava e preparou uma edição especial, que abria com uma manchete memorável:

- Vila Velha, a cidade do pecado.

Arnaldo tinha escrito o texto na frente da janela que dava para a casa da Zoé. Cada vez que uma gargalhada rebentava do outro lado, era uma frase candente que ele punha no papel. Como era um oposicionista ferrenho, lá pelas tantas saiu a dizer que o grande responsável era um certo coronel que acobertava todos os vícios e alimentava todas as infâmias. O Clarimundo, que pelo sentido da frase achou que infâmia era outra coisa, acordou o coronel com o jornal na mão.

- Coronel, estão dizendo que o senhor dá de comer para todas as meninas da Zoé.

O coronel leu o artigo e levantou a sobrancelha esquerda, sinal mais do que evidente de que não tinha gostado.

- Me chama o Alfredo.

Meia hora depois, o Alfredo estava no gabinete do coronel.

- Que negócio é esse?

- Vamos moralizar a cidade.

O coronel deu um murro na mesa e explodiu:

- Alfredo, se tu pensa que vai arrancar dinheiro da Zoé, está enganado.

O Alfredo disse que não queria arrancar dinheiro de ninguém, mas pura e simplesmente tornar Vila Velha uma cidade decente.

- Decente como?

Alfredo disse. E levou mais cinco minutos dando a relação de todas as degradações, que iam desde a casa da Zoé, até a expulsão de quatro irmãs que moravam na entrada da cidade e que, a bem da verdade, se deve dizer que nunca cobraram um tostão de ninguém, mas faziam o que faziam por puro amor à arte. Alfredo tomou fôlego e concluiu: 

- Vamos convocar todas as mães de família, todos os padres, todos os homens de bem para uma campanha moralizadora.

O coronel quando pensou nos homens de bem de Vila Velha teve um arrepio.

- Alfredo, entendi o problema. Manda buscar aquelas castelhanas que eu te empresto dinheiro.

O Alfredo fez um ar muito frio e respondeu que não sabia do que o coronel estava falando.

- Ah, é assim? Pois vou apoiar a campanha.

O outro não quis acreditar.

Vou. Quer saber do que mais? Vou te ajudar a desmascarar todos os cretinos da cidade. Amanhã passo no jornal.

O Alfredo saiu da casa do coronel pisando em nuvens. O único que não gostou da novidade foi o Arnaldo, que já estava com um soneto pronto chamando o coronel de Borgia dos Pampas.

- Mas ele vai apoiar mesmo?

- Me deu a palavra.

E de fato, no dia seguinte, o coronel entrou na redação do jornal com um ar muito satisfeito.

- Tenho todo o material aqui. Cartas, fotografias, confissões, testemunhos. Tudo.

A redação de "O Independente" ficou de boca aberta. O coronel jogou a papelada em cima da mesa.

- Primeira reportagem: a história de duas castelhanas que o diretor do Independente sustentava. Com uma fotografia do diretor de cuecas, gentilmente cedida por uma das vítimas. Segunda reportagem: a história de uma mulher da vida que durante seis meses emprestou dinheiro para o Arnaldo que só pagou com um soneto. E aqui está o soneto. Querem ouvir mais?

Ninguém queria.

- Muito bem, meus anjinhos. Podem publicar tudo isso no próximo número.

E inexplicavelmente no próximo número de "O Independente", o jornal publicava um artigo sobre Maria Madalena e um soneto do Arnaldo que começava assim: "Oh, tu, filha do pecado que mendigas um perdão". (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 126)

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