segunda-feira, 27 de setembro de 2021

UM DOS ÚLTIMOS PROFETAS

Fabrício CarpinejarFabrício Carpinejar

João Gilberto Noll transformou as margens no centro da literatura. Vai demorar muito para morrer, apesar do falecimento nesta última quarta-feira (29/3), aos 70 anos.

Autor de dezoito livros e premiado com cinco Jabutis, representava um dos últimos profetas de uma linhagem intransigente, urbana, sensorial, situada entre Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu.

Sua escrita não era fácil, mas era um difícil absolutamente emocionante, que celebrava o presente e psicanalisava os medos. Objetivo na subjetividade, anti-naturalista, trazia à tona o pasmo com o fim da estabilidade, onde não existe mais emprego e amor por toda a vida. O que resta é sobreviver numa segunda Torre de Babel em que todos os idiomas são um só e ninguém se entende.

Já nos anos 80 antecipou uma forte tendência ao nomadismo, revelando o transbordamento das fronteiras físicas com a globalização virtual.

Incisivo e polêmico, de estilo inconfundível, destruía propositalmente a harmonia familiar e feita de aparências em prol da sinceridade mais honesta e crua do andarilho. Ele sabia que ninguém herdava o caminho da verdade, ninguém o recebia de mão beijada, mas somente o descobria vivendo.

Seus personagens, raramente com nome, perambulam pelas ruas em busca de um sentido para existir. Interessava-se por retratar aqueles instantes em que alguém, inexplicavelmente, muda o seu destino e abandona os laços.

Ele criou uma galeria de perdidos irresistíveis, sábios, movidos a dúvidas e impulsionados a peregrinar por dentro das mais graves crises de identidade. Em Berkeley em Bellagio, o protagonista escritor passa a perder o idioma ao voltar de uma temporada italiana e só consegue se comunicar no Brasil mediante língua inglesa ginasial. Em Lorde, o protagonista de meia idade, mais uma vez um escritor, tenta apagar os vestígios de sua nacionalidade brasileira, "habitar outra carnação", em uma temporada em Londres. Em Harmada, um ex-ator se junta a um asilo de mendigos tentando resolver o enigma do passado.

A prosa desliza voluntariosa para ação, sem permeios ou piruetas. O romancista ultrapassou o romance de ideias em nome de uma encenação em tempo real de desejos, inquietações e pressentimentos, capaz de atingir o êxtase do grito e do gemido e consagrar o instante. Noll colocou em prática a proposta de "desativar o homem", anunciada em Canoas e Marolas, até assumir uma completa liberdade do instinto. Emerge de suas criações o bicho-palavra, a desafiar convenções sociais e opções sexuais pré-determinadas.

Perfeccionista, executava parágrafos longos e descritivos, quase como uma música estática. À maneira das composições de Philip Glass, utilizava consecutivas repetições e reduzia a música aos seus elementos primordiais para acentuar o transe e o mergulho no inconsciente coletivo. O ritmo, mais importante do que o tema, resgatava a sublimação da experiência com o mundo.

Fonte: Facebook

Nenhum comentário:

Postar um comentário