quarta-feira, 1 de abril de 2020

O TESOURO

Por Sérgio Jockymann
Pois, se há coisa que Vila Velha sempre teve para dar e vender foi tesouro escondido. Teve e tem, porque até hoje não passa ano sem que um ilustre cidadão se ponha a cavar com todo o desespero d'alma no fundo do quintal só porque a esposa sonhou com um panelão cheio de moedas de ouro. Também nisso Vila Velha é muito original, porque todos os tesouros enterrados no seu solo, foram enterrados dentro de panelões de ferro. Claro que apareceram alguns em sonhos, enterrados em arcas de madeira, mas não foram levados a sério. Tesouro escondido para impor respeito tinha que ser enterrado em panelão de ferro e por jesuíta, porque as outras ordens não mereciam confiança. Outra exigência é que o tesouro fosse visto em sonhos e de preferência pela esposa. Assim, nos áureos tempos, nem bem passava a lua de mel e já as esposas se punham a sonhar com panelões de ferro nos momentos mais impróprios. Jamais apareceu um só desses panelões, mas nem por isso o pessoal de Vila Velha deixou de crer na sua existência, porque afinal há coisas no mundo que só a fé explica.

Assim pois, quando dona Maneca acordou sentada na cama numa madrugada de sexta-feira e anunciou:

- Sonhei com um panelão de ferro.

O marido esfregou os olhos e num segundo se pôs a perguntar onde.

- Embaixo da casa do seu Domício.

Bem, existem lugares melhores para se esconder um tesouro, mas dona Maneca sempre foi uma mulher difícil de contestar.

- Vi um padre de picareta na mão.

- Jesuita?

Ela lançou um olhar indignado ao marido.

- Que mais podia ser? Claro que era jesuíta. Vinha fugindo. Desceu do cavalo com um panelão de ferro na mão. Encheu de moedas de ouro, pôs a tampa em cima e jogou num buraco.

- Onde?

- Embaixo da casa do seu Domício.

Seu Onofre amaldiçoou o padre com todas as forças do coração.

- Com tanto lugar no campo, vai enterrar logo embaixo da casa daquele desgraçado.

- Por isso mesmo. Assim ninguém procurava. Mas eu vi no sonho.

- Embaixo de que parte?

- Não sei, só sei que era embaixo.

Seu Onofre perdeu o sono e a tranquilidade. Quando o sol nasceu ele caminhava de um lado para outro.

- Tenho que entrar lá.

- Como?

- Não sei, mas tenho que entrar.

Ora, seu Domício não arredava pé de casa nem para ir à missa. Aliás, nem ia à missa, porque havia descoberto Augusto Comte e só falava em positivismo e na religião da humanidade. Para mal dos pecados, sempre que ouvia falar em tesouro escondido, tomava ares superiores e dizia:

- A superstição é a maldição da humanidade.

Pelo que seu Onofre não dormiu três dias roendo as unhas. Mas no quarto dia, o destino meteu o nariz no assunto. Dona Maneca entrou em casa esbaforida e anunciou por cima do busto imenso, que ainda pulava como pudim de geléia:

- Seu Domício foi chamado a Santa Maria. Questão de herança.

Seu Onofre fez o sinal da cruz.

- É a vontade de Deus.

E no dia seguinte, onze da manhã, seu Onofre cumpria a vontade divina. Entrou na casa do seu Domício com um ar muito deslavado e fez um exame do local. Voltou para casa esfregando as mãos de contentamento.

- Entre o alicerce e o assoalho tem bem um metro, Arranco umas tábuas e cavoco sem problema.

Meia-noite saiu de casa em companhia de dona Maneca e se pôs a cavar furiosamente embaixo da cozinha. Andava pelo metro e meio de fundura quando desistiu:

- Não pode ser aqui.

Dona Maneca concordou.

- Me parece ali no outro canto.

Mais metro e meio e seu Onofre teve que sentar.

- Não aguento mais.

- Deixa pra outra noite.

Foi meio de rastros para casa e no dia seguinte chegou a ter febre de tanto cansaço. Mas nem por isso desistiu. Na noite seguinte lá estava ele com Dona Maneca cavando embaixo da sala. Desta vez desceu dois metros antes de desistir.

- O que faltava era uma daquelas varas de ferro que a gente enfia chão a dentro.

- Deus te livre. Se tu compra uma daquelas, todo mundo já sabe pra que é.

- Então vamos ter que pôr um sócio. Sozinho não me aguento.

Dona Maneca disse que preferia morrer.

- Mas não me aguento.

- Então cavo eu.

E assim durante uma semana, marido e mulher cavaram alternadamente. Seu Onofre desapareceu das rodinhas de pôquer e dona Maneca alegou uma fraqueza. Mas como Vila Velha já conhecia os sintomas, o boato se espalhou como fogo em capim seco.

- Tão cavando um tesouro.

Na noite seguinte, mal seu Onofre saiu de casa, deu meia volta.

- Tão nos seguindo.

E estavam mesmo. Pelo menos vinte vila-velhenses estavam espalhados pelas esquinas com ares misteriosos. Seu Onofre quase morreu de ansiedade.

- Logo agora que só falta o quarto.

Dona Menca teve uma idéia.

- Vamos cavar de dia que ninguém nota.

A idéia foi aprovada e no dia seguinte os dois apanharam Vila Velha desprevenida e foram cavar embaixo do quarto de dormir. Mas cava que teve cava e não aparecia nada.

- Mulher, tu tem certeza que era aqui?

- Foi o que eu vi no sonho.

Mas naquela noite, dona Maneca sonhou de novo e no meio do sonho o padre apareceu e disse:

- Os castelhanos já levaram o tesouro.

Ela acordou em prantos e quando terminou de contar o sonho ao marido, seu Onofre queria declarar guerra ao Uruguai e Argentina.

- Roubaram dinheiro brasileiro.

Ficou dois dias que nem falava com ninguém, até que a febre passou. Mas aí, seu Domício voltou de Santa Maria de muito mau humor e se pôs a dar grandes passadas pela casa. Nem bem deu uma dúzia de passos e sentiu qualquer coisa de estranha.

- Manoel, essa casa não tá balançando?

- Também tive a impressão.

Mas como era tarde, os dois foram dormir sem examinar coisa alguma. E estavam no bom do sono, quando desabou um temporal medonho. E bem no meio do temporal se ouviu um estalo medonho e a casa do seu Domício se desmanchou de alto a baixo. Correu todo mundo, porque Vila Velha, sempre foi muito solidária em matéria de desastres. Seu Domício e dona Manoela foram retirados meio zonzos de dentro da casa e todo mundo estava amaldiçoando o temporal, quando alguém olhou para baixo do assoalho e levou um susto.

- Tá uma buracama só aqui embaixo.

E foi por isso que seu Domício descarregou o revólver em cima da casa do vizinho, que agarrado com dona Maneca embaixo da cama, só atinava repetir:

- É o que dá confiar em jesuita, é o que dá confiar em jesuíta. (JOCKYMANN, Sérgio. Vila Velha, Porto Alegre : Editora Garatuja, 1975, p. 113)

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