sexta-feira, 8 de maio de 2020

MR. MILES

Mr. Miles

Sobre as dificuldades de voltar

Nosso incansável viajante está em algum lugar na Índia ou em suas imediações, na companhia de Trashie. É o que sugere sua correspondência mais recente, datada do final do ano passado. Nesta semana, mr. Miles chegou a causar preocupação nesta redação, porque não respondeu a qualquer de nossas mensagens. É possível que ele esteja em alguma de suas apreciadas expedições de birdwatching, ou galgando uma trilha nos Himalaias. O fato é que sentimos um grande alívio quando, dentro do prazo, o correspondente britânico enviou sua resposta à primeira questão do ano.

Querido mr. Miles: minha mulher e eu voltamos, recentemente, de uma longa e proveitosa experiência sabática, durante a qual percorremos 28 países em três continentes. Temos toda uma vida pela frente (somos recém-casados) mas, por enquanto, tudo nos parece monótono e sem graça no retorno ao Brasil. O senhor sabe nos dizer quanto dura essa ressaca?
Victor Cohen, por e-mail

"Well, my friend: conheço alguma coisa sobre ressacas (as you know), e posso assegurar que, de um modo ou de outro, elas sempre acabam passando. Quase sempre, I'm afraid, elas são proporcionais à duração do período de embriaguez. No seu caso, com 28 países (e não me parece o caso de uma jornada em um daqueles ônibus que passam duas ou três horas em cada lugar), há que dar tempo ao tempo.

Tenha em mente, dear Victor, que eu mesmo optei por ser um eterno sabaticante, de modo que minhas ressacas são oriundas apenas de beberragens de má qualidade. A viagem que vocês fizeram me parece ser candidata ao livro Guinness dos recordes como a mais longa honeymoon de todos os tempos. E tenho certeza de que ambos voltaram mais ricos em conhecimento, na avaliação das diferenças, na tolerância e no modo de ver as coisas do que quando partiram.

São valores, by the way, fundamentais na solidificação de uma relação como a que vocês estão iniciando. Mas, mais que tudo, são colossais experiências que devem estar em epígrafe no retrato do resto de suas vidas. Como diriam os mais modernos, guardem-no em um nuvem só sua, com a certeza de que todos os dados estarão lá, à sua espera, quando chegar a hora de revê-los - e quantas vezes isso acontecerá!

Parece-me claro que esse sentimento de monotonia acomete qualquer ser humano depois de uma jornada intensa. Acordar, de novo, dia após dia, em uma mesma cidade, com seus velhos problemas e ruas familiares chega mesmo a dar preguiça. Ou a provocar dúvidas: será melhor fazermos como mr. Miles e viajarmos a vida inteira?

Se vocês também tiverem herdado uma grande fortuna de uma tia desconhecida, se também se tornarem sócios-remidos de oito grandes programas de milhagem e, of course, se tiverem o gosto de conhecer pessoas a ponto de tornarem-se padrinhos e compadres de muitas delas mundo afora, why not? Seria um caso inédito, em se tratando de casais, porque, mesmo em trânsito, a rotina acabará se estabelecendo, as manias surgirão e alguém há de querer criar raízes somewhere (como ocorreu com algumas das mulheres que mais amei).

Caso contrário, sigam firmes. A ressaca vai passar, suas vidas encontrarão novos caminhos e as nuvens que, desde já, os destacam dos demais, farão de seu futuro uma paisagem fértil e próspera.

Fonte: O Estadão

Nenhum comentário:

Postar um comentário