segunda-feira, 25 de abril de 2022

NADA NA PALMA DA MÃO

NADA NA PALMA DA MÃO
Martha Medeiros

Flashes de uma vida remota, quando não existia celular para avisar que o voo estava atrasado, que o combinado estava descombinado

Era para eu ter aterrissado em Porto Alegre às 21h, mas não havia teto para pousar e o avião teve que retornar a Florianópolis. Chegando lá, os passageiros não foram autorizados a deixar a aeronave. Passado um tempo, nova decolagem, e então sim, aterrissamos em Porto Alegre, quase 1h da manhã. Ao abrir a porta do meu apartamento, parecia uma festa surpresa, tinha primo que eu não via há anos, mas não era festa, e sim reforços convocados para acalmar minha mãe.

Fomos, uma colega de aula e eu, passar o domingo num sítio com uma turma que não era a nossa. O combinado era voltarmos à tardinha, mas o pessoal resolveu jantar por lá mesmo. As horas passavam, não havia telefone na casa, nós nem sabíamos exatamente onde estávamos, a informação que havíamos deixado com nossos pais era muito vaga: em algum ponto passando Viamão. Quando voltei, perto da meia-noite, havia um carro da polícia diante do meu edifício, prestes a iniciar as buscas.

Ele havia ficado de vir almoçar comigo ao meio-dia, mas não apareceu. Às 14h, eu continuava esperando. Às 16h, eu ainda não sabia dele. Às 22h, ele telefonou de um orelhão dizendo que, bem na hora que estava saindo de casa, um tio apareceu com a pior notícia do mundo. Ambos pegaram a estrada imediatamente para São Borja, a tempo de chegar para o enterro de seu irmão, que havia falecido naquela manhã. Minha aula terminava às 17h30. Ao sair pelo portão do colégio, eu logo enxergava o carro dele estacionado. Naquela tarde chuvosa, não. Esperei. Minhas colegas passavam por mim, davam tchau, e eu esperava. Alguns professores passavam, perguntavam se estava tudo bem, e eu mentia que estava. Começava a anoitecer e eu ainda aguardava meu pai, cujo carro havia quebrado numa rua distante, onde os táxis passavam todos ocupados.

Eu estava pela primeira vez em Barcelona, havia chegado com minha mochila no primeiro trem da manhã. Caminhei o dia inteiro, até encontrar um hostel baratinho para passar a noite. No Brasil, seria uma terça-feira como outra qualquer, mas eu estava viajando sozinha pela primeira vez, estava descobrindo o mundo, estava cansada e cheia de planos, e só pouco antes de cair no sono é que lembrei que era aniversário da minha melhor amiga.

Flashes de uma vida remota, quando não existia celular para avisar que o voo estava atrasado, que o combinado estava descombinado, que era preciso um substituto urgente para buscar o filho na escola, que mesmo do outro lado do oceano a gente jamais esqueceria de uma data tão importante como o dia em que nossa melhor amiga nasceu. Só quem viveu lembra a aventura que era estar num mundo sem localizador, sem mensagens de áudio, sem WhatsApp: nada na palma da mão, a não ser o coração.

Fonte: O Globo

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