segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

TRATADO GERAL DOS CHATOS

Antonio Prata

A chatice não é só um dom, é um ofício

"Ah, ele é chato, MAS, no fundo, ele é legal". Tá errado. A conjunção não é adversativa, é explicativa. Ele é chato PORQUE, no fundo, ele é legal. É justamente essa bondade, essa pureza, essa übérica disponibilidade e essa labradôrica fidelidade que fazem do chato, um chato.

Desconfio que haja menos chatos nos anéis do inferno de Dante do que ao lado de nosso Senhor. Pois a virtude é a principal arma do chato. É ela a Super Bonder que cola sua chatice à nossa culpa. Se o chato vacilasse, desse mancada, fosse um canalha (sonhar não custa nada) a cola derreteria. Pois diante de um canalha, de um mau-caráter, de um cretino poderíamos, com a consciência tranquila, dizer, "não, não vou no mês-versário de quatro meses da sua filha em Botucatu", "não, não lerei seu romance de 867 páginas grifando e dando sugestões", "não, não te darei carona até a Vila Nova Conceição se a festa é em Perdizes e eu moro no Sumarezinho".

Acontece que o chato tem crédito. Quando montaram a sua peça lá no Sesc Belenzinho, domingo às nove da matina, quem estava na bilheteria desde às oito e meia, serelepe e sorridente? Quando a bateria do seu carro arriou no meio da Tamoios, duas da manhã, quem vinha no carro logo atrás, com um fio para chupeta no porta-malas? Uma vez o chato conseguiu pra você duas entradas para um show do Caetano Veloso. Isso foi em 1996, mas show do Caetano é um trunfo e tanto, o chato sabe disso e sabe manter "sempre teso o arco da promessa". Que promessa? A de te chatear para sempre, "pelos sete buracos da sua cabeça".

A chatice não é só um dom, é um ofício. O chato tem uma planilha Excel mental onde estão anotadas todas as boas ações já feitas para você e todas as mínimas mancadas que você eventualmente deu com ele. Daí, num ato de paranormalidade, ao te encontrar ele compartilha este arquivo contigo, demonstrando assim o crédito que tem —e usa— para te aporrinhar .

Meu pai, conforme amadurece, vai tomando certas liberdades para com, vamos dizer assim, as convenções sociais —sinal inequívoco, aliás, de sabedoria. Teve um aniversário em que ele proibiu uma prima de levar o marido. Ligou pra ela e disse: Você tá convidada, mas o Jorge, não. Maior treta na família. Ligo pro meu pai tentando botar panos quentes. Bastou uma frase dele para eu entender a retidão, a coragem e a libertação presente em seu ato. "Antonio, o Jorge comprou um aquário —e ele explica, desde as pedrinhas do fundo até o tampo de vidro."

"Embaixo de tudo vem uma camada de xisto da Índia, que o xisto normal muda o pH da água, você sabia?". "Aí vem meia hora de pH, Antonio". "Depois do xisto —da Índia, lembra?— vem uma camada de lã de vidro, pra filtragem. Mas não a lã de vidro industrial, uma lã de vidro especial que vende em pet shop". "Meu filho, quando ele chega no peixe já tá de noite. Eu que não vou passar meu aniversário ouvindo falar da dieta floculada do peixe tetra-neon."

Embora esteja 100% ao lado do meu pai, pelo bem da família tentei argumentar: "Pai, lembra quando você operou o coração? O Jorge passou uma tarde inteira ao seu lado, no hospital". "Era golpe, Antonio! Ele já tinha tudo planejado! Tava me olhando ali cheio de sonda e pensando: daqui a vinte anos eu vou comprar um aquário e vou explicar direitinho pra ele, do xisto indiano ao limpa-limo do tampo de vidro. Não, Antonio. Eu tenho 77 anos, sei lá quanto tempo me resta, mas sei que não quero gastar um minuto que seja ouvindo explicação de aquário". Meu pai está certíssimo. Ainda mais porque, ouvi dizer, o Jorge agora começou um minhocário.

Fonte: Folha de S. Paulo

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