sábado, 12 de setembro de 2020

REELEIÇÃO PRESIDENCIAL

REELEIÇÃO PRESIDENCIAL
José Horta Manzano

… Os mais velhos se lembrarão de que, antes de Fernando Henrique, a legislação política brasileira não previa a reeleição para cargos do Executivo…

Costuma dizer-se que, em política, o brasileiro tem memória curta. No entanto, uma vista d’olhos à paisagem além-fronteiras ensina que esse traço de caráter não é exclusividade nacional. Em outras partes do mundo, dá-se o mesmo. O que pode variar é o intervalo que vai do fato ao esquecimento. Para casos comuns, um período de 15 a 30 anos é de bom tamanho. Passado esse tempo, o que aconteceu vai para o arquivo morto da memória.

Em momentos conturbados como o que o Brasil atravessa atualmente, o caudal de horrores produz duas consequências. Por um lado, o limite do aceitável se alarga, fazendo com que o indizível, antes obsceno, passe a ser dito em salões de respeito. Por outro, dado que a baciada de barbaridades é ininterrupta, seu volume age como fator suavizante – cada nova enormidade enterra a anterior.

Casos absolutamente fora do comum demandam mais tempo: as marcas da tragédia da Segunda Guerra, por exemplo, ainda são vivas na memória coletiva alemã, 75 anos depois do fim das hostilidades. E isso ainda periga durar um bom tempo.

A memória da presidência FHC, que terminou há 18 anos, já está encaixotada para arquivamento. Basta imaginar que os brasileiros de menos de 25 anos – quase metade da população – ainda não estavam em idade de compreender, quando o sociólogo deixou o trono. Há que ressalvar, é verdade, que os que lhe sucederam não economizaram esforços na tarefa de embaçar-lhe a imagem.

À beira dos 90 anos, FHC já chegou àquela idade em que o grosso da existência ficou para trás. Não vendo razão para continuar a dourar a pílula, comete um ou outro curioso sincericídio. A mídia costuma publicar artigos seus. O mais recente saiu no passado fim de semana.

Os mais velhos se lembrarão de que, antes de Fernando Henrique, a legislação política brasileira não previa a reeleição para cargos do Executivo. Tal como acontece ainda hoje no Chile, por exemplo, o presidente da República tinha direito a mandato de 4 anos, único e não renovável. Se quisesse voltar, tinha de entregar a faixa e esperar a eleição seguinte para se candidatar.

A emenda constitucional que abriu caminho para a reeleição foi votada no primeiro mandato de FHC. Levantando os braços aos céus, seus adversários denunciaram o escândalo: os votos para a vitória da PEC da reeleição teriam sido comprados! (Diga-se de passagem que, mais adiante, nenhum deles desdenharia o benefício desse dispositivo legal; mas essa já é outra história.)

Em seu último artigo, num sussurro e por linhas tortas, FHC admite que foi realmente assim. Surpreendentemente, confessa que errou. O erro não está em ter eventualmente cooptado parlamentares, mas em ter contribuído para enxertar na legislação política um instituto pernicioso. Tenho tendência a concordar com o ex-presidente.

A mim parece que, no universo político brasileiro, a possibilidade de reeleição, seja no nível que for, é péssima ideia; para a Presidência da República, é catástrofe anunciada. Todos já se deram conta de que doutor Bolsonaro, depois de cumprir ano e meio de mandato (dos quatro a que se comprometeu), entrou firme em campanha de reeleição. Não precisa ser futurólogo para adivinhar que, nos próximos dois anos, o fenômeno vai se acentuar. Se seu modo de governar já não era grande coisa, a perspectiva é de piora.

A possibilidade de reeleição inserida na legislação gera um quadro peculiar. Nos primeiros dois anos de mandato, o presidente tateia, sonda, vê ‘se dá pé’. Passado esse período, em vez de tomar as rédeas e executar seu programa de governo, põe-se a trabalhar para a reeleição. Vira presidente-boiadeiro, presidente-chapéu de couro, presidente-caiçara. Passeia pelo país, beija criancinhas, distribui benesses a parlamentares transformados em cabos eleitorais. Governar, que é bom, fica pra uma outra vez.

Caso seja reeleito (tanto o Lula quanto a doutora foram), já entra no segundo mandato sem ânimo. Terá gastado, no primeiro, toda a energia de que dispunha. Já que a lei não permite um terceiro mandato, pra que se esforçar?

Por essa razão, concordo com FHC em sua recusa (tardia, mas bem-vinda) do instituto da reeleição. No Brasil, enquanto o nível de consciência política não tiver se elevado, mais vale voltar ao sistema anterior, com mandato único e não renovável.

Se essa volta atrás for decidida um dia, é bom não esquecer de vedar a possibilidade de um parente do presidente pleitear o cargo. Que se exija um intervalo de pelo menos quatro anos entre o antigo dirigente e seu parente. Isso é pra evitar a implantação duma ‘dinastia familiar’ por rodízio, como fez o casal Kirchner na Argentina, alternância danosa que só foi quebrada com a morte de um dos atores.

Fonte: http://www.chumbogordo.com.br

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