quarta-feira, 23 de setembro de 2020

O ANALISTA DE BAGÉ

OUTRA DO ANALISTA DE BAGÉ

É sabido que todo psicanalista deve, ele mesmo, fazer análise antes de começar a analisar os outros. Segundo o analista de Bagé, isto acontece pela mesma razão que um cirurgião desinfeta as mãos “antes de mexê em tripa alheia” e para “o vivente descobri se não tá na profissão só pra ouvir bandalheira”. O próprio analista de Bagé precisou se analisar mas não passou da primeira sessão e teve que ser contido para não cumprir sua ameaça de sangrar seu analista, porque “esse aí só serve pra morcilha”.

- Mas morcilha de sangue de gente não presta.

- Então não serve pra nada!

Nunca se soube muito bem o que houve durante a sessão mas por muito tempo o analista de Bagé só se referia ao outro como “más bisbilhoteiro que filho de empregada”.

A solução foi o próprio analista se auto-analisar. Ele mesmo conta que foi um pouco cansativo ficar pulando do banquinho para o pelego e do pelego para o banquinho durante cinqüenta minutos, mas valeu a pena.

- Hoje me conheço de me tratar por tu e dividi palheiro, tchê.

Ninguém esteve presente, é claro, mas foi possível fazer uma razoável reconstituição do diálogo entre o analista de Bagé e ele mesmo, logo depois da formatura.

- Mas então, tchê?

- Pôs to aqui.

- Que venham os loco?

- Que venham os loco que eu reparto de pechada, tchê.

- Oigalê!

- Por Freud e Silveira Martins.

- Oigatê!

- Se corcoveá eu monto.

- E dá de relho.

- Buena, de relho não. De relho, só cavalo aporreado e china respondona.

- Guasca velho! E tu não tem nada pra botar pra fora? Recalque, complexo ou arroto?

- Mas o que é isso, índio velho? Tu sabe que bageense é como vitrine de Belchior, ta tudo lindo ali na frente. Escondido só bragueta de gordo.

- Não é como essas outra raça.

- Pôs não é. Tem raça que é que nem cestinha de morango. Por baixo é tudo podre.

- Bueno, se todo mundo fosse gaúcho, ser gaúcho não era vantagem.

- E ia faltar mate.

- Deus fez os outros primeiro e o gaúcho quando pegou a prática.

- Por isso é que tem tanto índio desajustado.

- Teu trabalho é curá esses desgarrado.

- E tu acha que eu to pronto, tchê?

- Mas tu tá virando carvão, tchê! Salta daí e vai trabalhar. (VERÍSSIMO, Luis Fernando. O Analista de Bagé, Porto Alegre : L&MP Editores, 1995, p. 243) 

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