quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

A CARA ATRAVÉS DO PANO

A CARA ATRAVÉS DO PANO
Ruy Castro

Depois de meses de máscara contra a Covid, passei a desconfiar dos mascarados dos gibis

Nas poucas vezes em que fui à rua nos últimos meses, senti-me culpado por estar quebrando a quarentena. Embora todas as saídas tivessem motivo justo —médico, dentista, banco—, temi ser confundido com os que voltaram a flanar pela cidade como se a pandemia tivesse acabado. Minha esperança era que, de máscara, eu não fosse reconhecido e pudesse atravessar incógnito o Leblon. Mas bastou-me pôr o pé na calçada para descobrir que era impossível.

O porteiro do prédio ao lado, varrendo as folhas das amendoeiras, foi o primeiro a dizer, "Fala, Ruy!". O colega com quem ele conversava emendou, "E aí, Ruy, e o Flamengo?". Meu vizinho de andar, que eu não via desde o Carnaval, passou por mim e disse que, pelo menos, estávamos livres das reuniões de condomínio. O casal da banca de jornais lamentou que, agora, eles só soubessem de mim pela Folha. Todos, como eu, de máscara.

Cruzei com várias outras pessoas que me lançaram olhares de simpatia, como se me vissem através do pano, e que eu também podia facilmente reconhecer das andanças pelo bairro. Ou seja, a máscara protege, mas não disfarça.

Perguntei-me como o Zorro fazia para que, na acanhada Reina de Los Angeles, em 1810, ninguém soubesse que, sob o pano preto, ele era Diego de La Vega. Afinal, não seria aquela meia máscara que o impediria de ser identificado pelos olhos, voz ou jeito de andar. A do Lone Ranger, o Zorro americano, menos ainda e, se ele não a tirava nem para o Tonto, de que servia? O mesmo quanto ao Fantasma --ou ele temia ser traído pelos pigmeus do golfo de Bengala? Sem falar do Spirit. E quem o Batman, com ou sem o Robin, pensava enganar com aquele capuz que deixava de fora o nariz, boca e indisfarçável queixo do milionário Bruce Wayne?

Mas o que me intriga mesmo é como, com aqueles socos e trambolhões, suas máscaras não caíam e os denunciavam. A minha vive saindo do lugar.

Fonte: Folha de S. Paulo

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