Ruy Castro
Elas nunca puseram uma palavra ou nota no papel. Contentavam-se em ser fabulosas intérpretes
Esta coluna não quer ser uma seção de obituários. Com frequência deixo de escrever sobre alguém que morreu, mesmo tendo o que dizer a respeito. Mas a bruxa está voando baixo. João Donato se foi no dia 17, Tony Bennett no dia 21 e, nesta segunda (24), com diferença de horas, Leny Andrade e Doris Monteiro.
Os artigos na imprensa disseram tudo: eram artistas insubstituíveis, únicos em seus gêneros e deixaram uma obra que ficará para sempre. Eu só acrescentaria: desde que, nesse para sempre, não se torne de vez proibido associar a música à beleza.
Os quatro tinham algo em comum: todos foram vítimas de asfixia profissional nos anos 1970 e 80. Donato, ao trocar sua carreira nos EUA pela volta ao Brasil em 1972, ficou dez anos desempregado. Tony, demitido pela Columbia por não se rebaixar ao repertório pop-rock que lhe queriam impor, fundou um selo, fracassou e cogitou suicídio. Leny também levou anos à margem da noite e das gravadoras. E Doris foi abatida no apogeu de sua beleza por querer continuar apenas uma fabulosa intérprete, e não uma cantora-compositora como o mercado passou a exigir.
E, então, às portas do século 21, Donato e Tony ressurgiram em grande estilo. Leny foi descoberta pelos clubes de jazz de Nova York e cantou com Tony Bennett. E Doris, incapaz de concessões, aceitou o limbo com serenidade, embora sua voz continuasse, até há pouco, tão sensual e cool quanto a que gravou "Dó-ré-mi", de Fernando Cesar, em 1955 —e posso garantir isso porque fui um dos privilegiados para quem, havendo motivo, ela cantava ao telefone.
Leny e Doris nunca puseram uma nota ou palavra no papel. Não precisavam. Leny tinha Durval Ferreira, Mauricio Einhorn, Marcos Valle, Pingarilho, Ronaldo Bôscoli. E Doris, Tom Jobim, Billy Blanco, Sidney Miller, Mauricio Tapajós, o próprio Donato. A elas só cabia o principal: imortalizar as canções deles.
Fonte: Folha de S. Paulo
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