quarta-feira, 4 de novembro de 2020

O HOMEM TROCADO

O HOMEM TROCADO

O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.

– Tudo perfeito – diz a enfermeira, sorrindo. 

– Eu estava com medo desta operação…

– Por quê? Não havia risco nenhum.

– Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos…

E conta que os enganos começaram com seu nascimento. Houve uma troca de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos redondos. Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. 

Ou com sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não soubera explicar o nascimento de um bebê chinês.

– E o meu nome? Outro engano. 

– Seu nome não é Lírio?

– Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e… 

Os enganos se sucediam. Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não conseguira entrar na universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na lista. 

– Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês passado tive que pagar mais de R$ 3 mil.

– O senhor não faz chamadas interurbanas? 

– Eu não tenho telefone! 

Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram felizes.

– Por quê?

– Ela me enganava. 

Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas que não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o médico dizer: – O senhor está desenganado. Mas também fora um engano do médico. 

Não era tão grave assim. Uma simples apendicite. 

– Se você diz que a operação foi bem… A enfermeira parou de sorrir.

– Apendicite? – perguntou, hesitante.

– É. A operação era para tirar o apêndice.

– Não era para trocar de sexo?

Luís Fernando Veríssimo, crônica “O Homem Trocado”, do livro “Comédias para se ler na Escola”. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2014

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