quinta-feira, 5 de novembro de 2020

O HOMEM QUE TODOS QUERÍAMOS SER

O HOMEM QUE TODOS QUERÍAMOS SER
Ruy Castro

Mas houve um momento em que ele próprio foi deixando de ser Sean Connery

Em fins de 1962, quando Sean Connery explodiu em "O Satânico Dr. No", poucos sabiam dizer seu nome. Chamavam-no de Sin —Sin Connery. O que, considerando-se o personagem que ele fazia (o duplo zero de 007 significava que tinha licença para matar), não era tão despropositado. Mas os mais cultos ensinaram: Sean pronunciava-se Xón —como em John, seu equivalente na Escócia, de onde Connery, inglês no filme, provinha. Sorte nossa ele não se chamar Seamus, outro nome popular em seu país —e que se pronunciava Xêimas.

Os fãs do diretor John Ford sempre souberam que Sean era Xon. Era o nome verdadeiro do cineasta, americano de origem irlandesa —Sean Aloysius O'Fearna—, e não havia nada sobre o cineasta de "Rastros de Ódio" (1956) que seus adoradores desconhecessem. Além disso, foi o nome que Ford deu a John Wayne, Sean Thornton, em "Depois do Vendaval" (1952), seu filme-conto de fadas passado numa Irlanda mítica. Impossível não gravá-lo depois de escutá-lo dito por Maureen O'Hara.

A morte de Sean Connery foi uma perda pessoal para muitos de nós. Todos queríamos ser Sean Connery; as mulheres queriam ter Sean Connery; e talvez o próprio Sean também quisesse ser Sean Connery. Como Cary Grant, ele pingava charme e elegância naturais, mas, segundo relatos, seu devastador James Bond foi uma criação de Terence Young, diretor dos primeiros filmes da série e que imprimiu ao personagem seu estilo pessoal.

Soube-se há dias que, nos últimos anos, Sean sofria de uma forma de demência senil. A memória se esvai, a pessoa deixa de se reconhecer. Para mim, é pior do que a simples e inexorável decrepitude física. É injusto que os pontinhos de luz comecem a se apagar, um a um, e que a maravilhosa malha do cérebro se torne um lugar escuro.

Eu me pergunto se haverá um momento em que a pessoa se vê no pórtico desse lugar escuro.

Fonte: Folha de S. Paulo

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