quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

NOSSA LYA LUFT

NOSSA LYA LUFT
Fabrício Carpinejar

Lya Luft morreu.

Para quem não entende a gravidade desses sinos tocando em Porto Alegre na manhã de quinta (30/12), é como perder Erico Veríssimo de novo.

É se despedir de uma joia da literatura intimista. É um vazio insubstituível.

Lya que era clássico: "As Parceiras", "Reunião de Família"e "Quarto Fechado" renderem peças e teses.

Lya que era universal a todas as idades, com trinta um livros entre romances, coletâneas de poemas, crônicas, ensaios e infantis.

Lya que era moderna. Tornou as suas reflexões sobre perdas e ganhos um best-seller: vendeu mais de 1,5 milhão de exemplares e foi traduzido em 13 países. Permaneceu por 113 semanas no topo da lista dos mais vendidos.

Lya que abriu caminho para o protagonismo feminino na literatura, mostrando que ela não devia ser uma mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa.

Lya que traduziu Rilke, Virgínia Woolf, Herman Hesse e Thomas Mann, dialogando com a tradição.

Lya que combatia a ideia de que casar era ser feliz para sempre, mas batia na tecla de que casar era continuar sendo.

Lya que nos advertia a agir da mesmo forma sozinhos ou acompanhados.

Lya que compreendia o quanto a coragem já residia em erguer a asa de uma xícara de café e dar bom dia, que as maiores alturas e vertigens são por dentro de nós.

Lya que nos ensinou a não ficar parado no tempo chorando as nossas dores, ela que sofreu o pior dos lutos: a perda do filho.

Lya que nos pedia para avançar apesar das fragilidades, pelas fragilidades.

Lya que amou seus fantasmas como se fossem anjos.

Lya que escapava nas horas vagas para as árvores da infância, convivendo com gnomos e duendes. Ela não somente acreditava neles como eles acreditavam nela.

Lya que não tinha só um amigo imaginário, porém a sua família inteira.

Lya que nos transformava com o seu olhar e nos fixava com o seu pensamento.

Lya que consultava os mapas para seguir o imprevisto.

Lya que sempre dizia que ser amoroso não é estar inteiramente disponível.

Lya que criou casulos com o fio de seda da sua melodia, dançou com as sombras, descortinou a beleza da melancolia.

Lya que subia a escada rolante no sentido contrário, para nos ilustrar o que é a esperança.

Lya que não trocava a maturidade pelas ilusões, que encostava os lábios nas janelas para beijar o vento.

Lya que suportava a vida sem se submeter, aceitava a vida sem se humilhar, entregava-se à vida sem renunciar a si mesma.

Lya que foi lúcida até o último suspiro, respeitando as frutas de cada estação, de cada idade.

Lya que nos lia como ninguém.

Lya que escrevia as suas obras a quatro mãos: ela e o destino. Agora o destino segue a escrita para imortalizá-la.

Texto publicado no jornal Zero Hora, GZH, 30/12/2021

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