terça-feira, 21 de dezembro de 2021

O SUPREMO NÃO TEM DONO

O SUPREMO NÃO TEM DONO
Oscar Vilhena Vieira

Caberá a Kassio Nunes e André Mendonça deixar claro que servem apenas à Constituição

O Supremo é uma criatura da Constituição, tal como o Congresso, as Forças Armadas ou o SUS. Suas atribuições não estão à disposição de quem quer que seja. Guardar a Constituição é sua missão precípua.

O presidente da República oferece reiteradas demonstrações de não se conformar com isso. Não bastassem os ataques e ameaças, a cada momento em que o tribunal impugna um de seus atos arbitrários ou contraria os interesses de seus acólitos, o presidente passou a se gabar, com a nomeação de um segundo ministro, de possuir 20% do tribunal, deixando claro a empresários embevecidos na Fiesp que, se reeleito, dobraria sua quota no tribunal.

Não se trata apenas de uma tosca manifestação de um arruaceiro. Bolsonaro segue fielmente a nova cartilha dos populistas autoritários, que determina a captura das instituições democráticas, especialmente aquelas responsáveis pela aplicação da lei.

Nesse contexto, muitos têm questionado a nomeação de um ministro "terrivelmente evangélico" para o tribunal. A religião de qualquer ministro me parece um dado absolutamente irrelevante. O mais preocupante foram suas demonstrações de deslealdade constitucional ao exercer a autoridade pública, permitindo da elaboração de dossiês contra adversários do governo ao emprego da extinta lei de segurança nacional para intimidar jornalistas e opositores.

O desafio de qualquer um que chegue a um tribunal numa democracia é demonstrar que suas preferências pessoais, ideologia, vínculos políticos e mesmo a mais arraigada fé religiosa, não interferirão no exercício da tarefa de defender os direitos e as instituições estabelecidas pela Constituição, mesmo quando entrarem em confronto com suas mais profundas crenças e valores pessoais.

Não se trata de tarefa fácil. O caso da revista Realidade, julgado num dos períodos mais duros do regime militar, no entanto, deveria servir de exemplo de como juízas e juízes deveriam se comportar quando seu valores entram em choque com as regras da Constituição.

A revista havia sido censurada por um juiz de menores que a julgou obscena, por trazer uma ampla reportagem generosa com mães solteiras, inclusive com fotos de um parto.

Instalou-se no Supremo um debate sobre ser ou não a revista obscena. Foi quando o ministro Aliomar Beleeiro, nomeado por Castelo Branco, católico, ex-deputado da UDN, que apoiou o golpe militar, mudou o rumo do debate.

O julgamento sobre a obscenidade, de acordo com Baleeiro, não poderia ser entregue "ao arbítrio do juiz... conforme lhe der na cabeça, segundo sua concepção pessoal ou visão religiosa...". As pessoas "têm concepções de vida diferentes das nossas. Não podemos impor os nossos padrões" às demais pessoas, argumentava Baleeiro com seus colegas da segunda turma do Supremo Tribunal Federal, a mesma que será ocupada por André Mendonça.

Magistrados, como as demais pessoas, são fortemente influenciados por seus valores, visões de mundo, preconceitos, muitas vezes escondidos no íntimo de seus inconscientes, quando tomam decisões. Bons magistrados são aqueles que, através de um processo reflexivo e muita disciplina profissional, não submetem os seus jurisdicionados se não àquilo que determina a lei, como o fez Aliomar Baleeiro, no caso da revista Realidade.

Bolsonaro cravou na testa de Kassio Nunes e André Mendonça de que eles são seus ministros. Mais, que Mendonça foi para o tribunal por ser "terrivelmente evangélico". Caberá a eles, no dia a dia da judicatura, deixar claro que não têm dono. Que servem apenas à Constituição.

Fonte: Folha de S. Paulo

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